A LÂMPADA DE ÍLHAVO
Caríssima/o:
A primeira saída oficial da nossa terra era à sede do concelho, onde fomos pelo bilhete de identidade e, poucos dias depois, para o exame da 4.ª classe. É verdade, parece que ainda foi ontem! Como o tempo corre e quantas mudanças! Vejam só que para ir a tão importante acto, ou íamos a pé, ou apanhávamos boleia de bicicleta ou então táxi. Pela lógica, este era proibido e, no nosso caso, fomos algumas vezes no quadro da bicicleta puxada pelo Hortêncio e o Oliveiros no porta-bagagem! Mas isto era um luxo: o vulgar era calcorrear correndo pelos caminhos que atravessavam a floresta.
Diniz Gomes empresta-nos a sua escrita de «Costumes e Gentes de Ílhavo», p. 57 ss., de 1941, para nos elucidar sobre a tal estória da lâmpada:
“Poucas serão as terras do nosso país, de grande ou pequena categoria, a quem a lenda popular não tenha atribuído uma anedota ou história ridículas, de que muitos se servem, por graça, para arreliarem os naturais das localidades atingidas.
Ílhavo, está bem de ver, não podia deixar de ter, também, a sua historieta jocosa, direi mesmo, um pouco vexatória para os brios do seu povo, bastante cioso do seu bom nome e honrosas tradições.
O leitor, estou certo disso, conhece-a de sobra, tanto ela se popularizou e correu mundo.
Trata-se do pretenso roubo de uma lâmpada de prata que se diz ter existido na matriz da vila, e que, em certo dia, foi levada para limpar por um espertalhão de marca maior que por aqui abordou, e que teve artes de praticar a audaciosa façanha sem ser incomodado, e, precisamente na ocasião em que ali se rezava missa, estando o templo repleto de fiéis. [...]
Ora as coisas, segundo me contaram quando eu era menino e moço, passaram-se assim:
Era domingo de festa na terra. [...]
Iria a missa em meio quando, por uma das portas laterais da igreja, entrou um indivíduo de boa aparência mas desconhecido na terra, que se dirigiu vagarosamente para junto da Capela do Santíssimo, em cujo limiar se encontrava suspensa do tecto, uma aparatosa lâmpada de prata lavrada com o peso dalguns arráteis, que ao tempo ainda não havia gramas nem quilos.
O homem, depois de ajoelhar e de se benzer, levantou-se e foi poisar, sobre um dos degraus de pedra do púlpito, um grande saco de linhagem de que vinha munido. E, olhando, com certa curiosidade a soberba lâmpada, murmurou desalentado:
- Quem te há-de limpar por semelhante preço?! O negócio que eu fui fazer!...
Todos os que o rodeavam, e ouviam a missa, inquiriram, em voz baixa entre si, se era realmente verdade a lâmpada ir ser limpa desta vez, como há muito era mister, tão suja e azebrada ela se encontrava.
E a boa nova correu ligeira de boca em boca, procurando todos ver de perto o artista encarregado pela Senhora Junta da Paróquia de executar o trabalho.
Mas o homem é que não manifestava interesse algum por isso, visto permanecer ali parado e indeciso, sem querer tomar qualquer resolução, repetindo a miúdo:
- Mas quem te há-de limpar por semelhante preço?!...
E o melhor da passagem é que o seu aspecto triste e acabrunhado chegou a inspirar relativa compaixão entre os assistentes.
Mas, a certa altura, pareceu encher-se de coragem, dizendo resoluto:
- Pois se justei, está justo! Venha a lâmpada abaixo!
E logo a corda que a segurava correu na roldana, fazendo descer vagarosamente a lâmpada que o desconhecido guardou dentro do saco que trouxera. Em seguida, saiu lentamente da igreja pela mesma porta por onde tinha entrado.
Findara a missa. Pouco a pouco os fiéis vão abandonando a igreja[...].
Arrumados, à pressa, os paramentos nos pesados armários da sacristia, e apagada as discretamente as velas de cera dos altares, o solícito sacristão foi, pressuroso, à residência paroquial, saber do senhor prior porquanto fora justa a limpeza da lâmpada do Santíssimo, e quem era o artista encarregado desse serviço.
Esta curiosidade, que sempre foi atributo de todos os sacristães havidos e por haver, causou surpresa e alvoroço no bom do padre, que de nada sabia nem se apercebera enquanto rezava a sua missa. E logo previu que a igreja fora sacrilegamente roubada pelo que mandou, imediatamente, tocar os sinos a rebate, ordenando a saída de homens resolutos em perseguição do audacioso larápio. Infelizmente, este, já não foi possível ser apanhado. [...]
Este estranho e nunca visto acontecimento causou, está bem de ver, profunda consternação na nossa terra. Por esse motivo, os sinos da igreja dobraram em sinal de luto durante três dias e fizeram-se orações de resgate e desagravo. Realmente o caso não era para menos.
E aqui tem o leitor, contada como eu a sei, a história do roubo ardiloso da lâmpada da igreja de Ílhavo. O facto, pela sua originalidade, tornou-se notório, popularizando-se. A ponto tal que ainda hoje nos surge, às vezes, um gracioso que maliciosamente nos diz:
- Ah! Você é da terra da lâmpada?»
Afinal, esta brincadeira da lâmpada algumas vezes serviu quando a rapaziada de Ílhavo nos atacava:
- Vai cavar batatinhas para a Gafanha!
Ai, sim, diz então onde puseram a lâmpada?
E funcionava...
Manuel
A primeira saída oficial da nossa terra era à sede do concelho, onde fomos pelo bilhete de identidade e, poucos dias depois, para o exame da 4.ª classe. É verdade, parece que ainda foi ontem! Como o tempo corre e quantas mudanças! Vejam só que para ir a tão importante acto, ou íamos a pé, ou apanhávamos boleia de bicicleta ou então táxi. Pela lógica, este era proibido e, no nosso caso, fomos algumas vezes no quadro da bicicleta puxada pelo Hortêncio e o Oliveiros no porta-bagagem! Mas isto era um luxo: o vulgar era calcorrear correndo pelos caminhos que atravessavam a floresta.
Diniz Gomes empresta-nos a sua escrita de «Costumes e Gentes de Ílhavo», p. 57 ss., de 1941, para nos elucidar sobre a tal estória da lâmpada:
“Poucas serão as terras do nosso país, de grande ou pequena categoria, a quem a lenda popular não tenha atribuído uma anedota ou história ridículas, de que muitos se servem, por graça, para arreliarem os naturais das localidades atingidas.
Ílhavo, está bem de ver, não podia deixar de ter, também, a sua historieta jocosa, direi mesmo, um pouco vexatória para os brios do seu povo, bastante cioso do seu bom nome e honrosas tradições.
O leitor, estou certo disso, conhece-a de sobra, tanto ela se popularizou e correu mundo.
Trata-se do pretenso roubo de uma lâmpada de prata que se diz ter existido na matriz da vila, e que, em certo dia, foi levada para limpar por um espertalhão de marca maior que por aqui abordou, e que teve artes de praticar a audaciosa façanha sem ser incomodado, e, precisamente na ocasião em que ali se rezava missa, estando o templo repleto de fiéis. [...]
Ora as coisas, segundo me contaram quando eu era menino e moço, passaram-se assim:
Era domingo de festa na terra. [...]
Iria a missa em meio quando, por uma das portas laterais da igreja, entrou um indivíduo de boa aparência mas desconhecido na terra, que se dirigiu vagarosamente para junto da Capela do Santíssimo, em cujo limiar se encontrava suspensa do tecto, uma aparatosa lâmpada de prata lavrada com o peso dalguns arráteis, que ao tempo ainda não havia gramas nem quilos.
O homem, depois de ajoelhar e de se benzer, levantou-se e foi poisar, sobre um dos degraus de pedra do púlpito, um grande saco de linhagem de que vinha munido. E, olhando, com certa curiosidade a soberba lâmpada, murmurou desalentado:
- Quem te há-de limpar por semelhante preço?! O negócio que eu fui fazer!...
Todos os que o rodeavam, e ouviam a missa, inquiriram, em voz baixa entre si, se era realmente verdade a lâmpada ir ser limpa desta vez, como há muito era mister, tão suja e azebrada ela se encontrava.
E a boa nova correu ligeira de boca em boca, procurando todos ver de perto o artista encarregado pela Senhora Junta da Paróquia de executar o trabalho.
Mas o homem é que não manifestava interesse algum por isso, visto permanecer ali parado e indeciso, sem querer tomar qualquer resolução, repetindo a miúdo:
- Mas quem te há-de limpar por semelhante preço?!...
E o melhor da passagem é que o seu aspecto triste e acabrunhado chegou a inspirar relativa compaixão entre os assistentes.
Mas, a certa altura, pareceu encher-se de coragem, dizendo resoluto:
- Pois se justei, está justo! Venha a lâmpada abaixo!
E logo a corda que a segurava correu na roldana, fazendo descer vagarosamente a lâmpada que o desconhecido guardou dentro do saco que trouxera. Em seguida, saiu lentamente da igreja pela mesma porta por onde tinha entrado.
Findara a missa. Pouco a pouco os fiéis vão abandonando a igreja[...].
Arrumados, à pressa, os paramentos nos pesados armários da sacristia, e apagada as discretamente as velas de cera dos altares, o solícito sacristão foi, pressuroso, à residência paroquial, saber do senhor prior porquanto fora justa a limpeza da lâmpada do Santíssimo, e quem era o artista encarregado desse serviço.
Esta curiosidade, que sempre foi atributo de todos os sacristães havidos e por haver, causou surpresa e alvoroço no bom do padre, que de nada sabia nem se apercebera enquanto rezava a sua missa. E logo previu que a igreja fora sacrilegamente roubada pelo que mandou, imediatamente, tocar os sinos a rebate, ordenando a saída de homens resolutos em perseguição do audacioso larápio. Infelizmente, este, já não foi possível ser apanhado. [...]
Este estranho e nunca visto acontecimento causou, está bem de ver, profunda consternação na nossa terra. Por esse motivo, os sinos da igreja dobraram em sinal de luto durante três dias e fizeram-se orações de resgate e desagravo. Realmente o caso não era para menos.
E aqui tem o leitor, contada como eu a sei, a história do roubo ardiloso da lâmpada da igreja de Ílhavo. O facto, pela sua originalidade, tornou-se notório, popularizando-se. A ponto tal que ainda hoje nos surge, às vezes, um gracioso que maliciosamente nos diz:
- Ah! Você é da terra da lâmpada?»
Afinal, esta brincadeira da lâmpada algumas vezes serviu quando a rapaziada de Ílhavo nos atacava:
- Vai cavar batatinhas para a Gafanha!
Ai, sim, diz então onde puseram a lâmpada?
E funcionava...
Manuel