Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
O “inferno” em que transformámos o nosso planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação absurda.
1. Segundo um conhecido conto judaico, um rabino fez a Deus o seguinte pedido: “Deixa-me ir dar uma vista de olhos pelo céu e pelo inferno.” O pedido foi aceite e Deus enviou-lhe, como guia, o profeta Elias.
O profeta levou o rabino a uma grande sala. No centro ardia um fogo que aquecia uma panela enorme, com um guisado que enchia o ambiente com o seu aroma.
À volta estava toda a gente pronta a servir-se, com uma grande colher na mão. Apesar disso, viam-se as pessoas esfomeadas, macilentas, sem forças, a cair.
As colheres eram mais compridas do que os seus braços, de tal modo que não as conseguiam levar à boca. As pessoas estavam tristes, desejosas e em silêncio, de olhar perdido.
O rabino, espantado e comovido, pediu para sair desse lugar espectral. De inferno já tinha visto o suficiente.
O profeta levou-o então a outra sala. Ou talvez fosse a mesma. Tudo parecia exactamente igual: a panela ao lume, com apetitosas iguarias, a gente à volta com grandes colheres na mão. Via-se que estavam todas a comer com gosto, alegres, com saúde, cheias de vida. A conversa e as gargalhadas enchiam a sala. Isto tinha que ser o paraíso! Mas, como é que se tinha conseguido uma tal transformação?
As pessoas tinham-se voltado umas para as outras e usavam a enorme colher para levar comida a quem estava à sua frente, procurando que a outra ficasse satisfeita e assim acabavam por ficar todas bem!
Mesmo quem acha piada a este conto observa que não se lhe deve pedir demasiado: reproduz uma concepção demasiado simplista, sem interesse num mundo espantosamente complexo. As boas parábolas são paradoxais, enigmáticas e de inesgotáveis leituras.