sábado, 5 de dezembro de 2020

EDUARDO LOURENÇO E DEUS

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias 



1. Sobre Eduardo Lourenço, o filósofo, o ensaísta, o pensador — um dos mais lúcidos do nosso tempo —, o crítico da arte, das múltiplas artes, nomeadamente da literatura e da música..., outros já falaram e escreveram. 
Encontrei-o várias vezes e gostaria de deixar aqui breves reflexões sobre o tema em epígrafe, a partir de alguns desses encontros, sempre iluminantes para mim. 

2. 1. Participámos no Encontro de Lisboa, organizado pelo GOL — era então Grão-Mestre António Reis —, subordinado ao tema “Religiões, Violência e Razão”. E diz-me Eduardo Lourenço mais ou menos assim: Ainda bem que também cá está, porque se o meu avô me visse aqui... 
A abrir o Encontro, falou da estranha crise contemporânea. Enquanto o Ocidente se desertifica de Deus, noutras culturas não só não há morte de Deus como, em vez da laicização, continuam na sua Idade Média, acreditando que o seu Deus é o verdadeiro e o Ocidente está em vias de perdição. De facto, o Ocidente teve um dinamismo incomparável, e a razão disso é que o seu debate foi sempre à volta de Deus. Noutras culturas, Deus é um dado e está no centro de tudo; no Ocidente, Deus tem sido uma interpelação infinita. Deus não é uma evidência, porque não é um objecto. Deus é o nome, precisamente enquanto anti-nome, da nossa incapacidade de captar o Absoluto, o modo de designarmos a nossa incapacidade de ocuparmos o seu lugar. O Ocidente é a procura e o debate à volta desta questão. É-se contra a objectivação de Deus, porque Deus-pessoa não é objectivável. Deste modo, o Ocidente afirma-se como procura da liberdade. Quando, noutras culturas, se dá a pretensão de apoderar-se de Deus, temos fanatismo. 
E continuou, dizendo que, quando se dogmatiza, é para dominar. A perspectiva cristã caminha sobre outro chão. Aqui, Deus aparece como não violência, como puro amor, como espaço de liberdade absoluta. Sem Ele, as nossas liberdades não têm lugar. Ao revelar-se como amor, Deus mostra que, se a violência é o estado natural, a não violência é que é o mistério, e o que liberta é o não poder. 

2. 2. De outra vez, vínhamos de um debate, já tarde na noite, do Casino da Figueira para o hotel. E eu disse-lhe que o tinha citado num artigo, pois dissera ao EXPRESSO que lhe “pode acontecer rezar”. E ele: “Admira-se? Todas as pessoas rezam”. 

2. 3. Em 2016, estivemos de novo no Casino da Figueira, para um debate sobre “Utopia e distopias”. Nele, reflectiu sobre a herança europeia, atravessando a Grécia, a cristianização, o humanismo..., e desembocando nos nossos dias, com esta afirmação: a Europa “nunca esteve tão confrontada com um desafio tão novo”, e “o centro da crise está em França, que está a discutir se tem ou não identidade, e isso é de ficar aterrado”. Daí passou para o medo que a Europa enfrenta em relação ao mundo islâmico, considerando que “o maior aliado do islão é a Arábia Saudita, país que alimenta o cruzadismo que vem desse lado. Mas o mundo tornou-se tão pequeno que nada se pode pôr à margem”. 
E ficou-me este aviso: A força e o poder de Vladimir Putin vêm-lhe de ele considerar “a Santa Rússia” como a última barreira contra a islamização da Europa. 

2. 4. Devo uma palavra de especial gratidão a Eduardo Lourenço pelo prefácio luminoso, logo no título: “Suicidário Ocidente”, seguido do dito célebre de Fernando Pessoa “Não haver Deus é um Deus também”, com que honrou o meu livro “Deus Ainda Tem Futuro?” (2014). Ficam aí alguns parágrafos. 
“Enquanto Ocidente, o nosso mundo conhece uma desertificação religiosa sem precedentes e, na aparência, irremediável. Tal é o diagnóstico de Marcel Gauchet, um dos seus paradoxais exegetas inconformado com essa nova versão da tão glosada “morte de Deus”, vivência radical da ausência de sentido para a Vida em si mesma e nós nela. Distingue-se esta nova situação do canónico “ateísmo” que sob a figura da negação de Deus era ao mesmo tempo uma figura da certeza, a mais radical de todas. 
... o conteúdo único daquilo que ainda chamamos “história humana” não explicita uma luta análoga a uma fábula à Saramago, um desafio mítico entre o Homem e Deus, mas uma luta sem fim do Homem consigo mesmo como o Outro, com a inconsciente esperança de que o vencedor dela seja enfim o Deus criador e todo-poderoso que nos forneceu o modelo da vontade de poderio que é a essência demoníaca da Humanidade. 
Questão atrevida e que na verdade soa a blasfémia (ou soaria, se a formulássemos em terras do islão) esta, que sabemos grave e urgente como nenhuma outra para ocidentais em vésperas de descerem a novas catacumbas: Deus ainda tem futuro? Quando aquela, menos vertiginosa mas não menos apocalíptica, seria: O Homem, a Humanidade, ainda tem futuro? 
... Não tardará muito que entremos no tempo da hipercomunicação com o mundo à volta convertido numa espécie de deserto ignorado dos antigos. Foi desta autodesertificação que a dúvida apenas formulável acerca de Deus pôde nascer. Não esperemos que o Deus imaginado por nós como sem futuro venha, como o Cristo de um célebre conto de Eça de Queirós, confirmar-nos que ainda está entre nós. Do silêncio de Deus que nós mesmos criámos não virá nenhum socorro. É diante dele como Ausência suposta e Presença agostinianamente mais interior a nós do que nós que somos convocados para fazer prova de vida. E de vida eterna. A única que nos ajuda a suportar todas as ausências dos que nesta vida nos foram, à maneira de Dante, reflexos de uma Luz mais clara do que a do sol e das estrelas.” 

3. O Deus de Eduardo Lourenço era o Deus de Jesus e dos místicos. 

Anselmo Borges no DN 

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