domingo, 6 de dezembro de 2020

É URGENTE E É POSSÍVEL MUDAR

Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO


O “inferno” em que transformámos o nosso planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação absurda.

1. Segundo um conhecido conto judaico, um rabino fez a Deus o seguinte pedido: “Deixa-me ir dar uma vista de olhos pelo céu e pelo inferno.” O pedido foi aceite e Deus enviou-lhe, como guia, o profeta Elias.
O profeta levou o rabino a uma grande sala. No centro ardia um fogo que aquecia uma panela enorme, com um guisado que enchia o ambiente com o seu aroma.
À volta estava toda a gente pronta a servir-se, com uma grande colher na mão. Apesar disso, viam-se as pessoas esfomeadas, macilentas, sem forças, a cair.
As colheres eram mais compridas do que os seus braços, de tal modo que não as conseguiam levar à boca. As pessoas estavam tristes, desejosas e em silêncio, de olhar perdido.
O rabino, espantado e comovido, pediu para sair desse lugar espectral. De inferno já tinha visto o suficiente.
O profeta levou-o então a outra sala. Ou talvez fosse a mesma. Tudo parecia exactamente igual: a panela ao lume, com apetitosas iguarias, a gente à volta com grandes colheres na mão. Via-se que estavam todas a comer com gosto, alegres, com saúde, cheias de vida. A conversa e as gargalhadas enchiam a sala. Isto tinha que ser o paraíso! Mas, como é que se tinha conseguido uma tal transformação?
As pessoas tinham-se voltado umas para as outras e usavam a enorme colher para levar comida a quem estava à sua frente, procurando que a outra ficasse satisfeita e assim acabavam por ficar todas bem!
Mesmo quem acha piada a este conto observa que não se lhe deve pedir demasiado: reproduz uma concepção demasiado simplista, sem interesse num mundo espantosamente complexo. As boas parábolas são paradoxais, enigmáticas e de inesgotáveis leituras.
Nem sempre. Este conto não se apresenta como uma teoria económica, financeira, jurídica para a organização da sociedade ou do Estado. Gosto do seu humor e da sua aparente ingenuidade. Não está nada longe da antropologia e da ética do filósofo alemão, Jürgen Habermas, ao mostrar que a vida do ser humano só se realiza na interacção com os outros [1].
O “inferno” em que transformámos o nosso planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação absurda. O destino universal dos bens faz parte da Doutrina Social da Igreja. Se fosse praticado, podia fazer deste mundo um paraíso do qual nos continuamos a expulsar. Existem, hoje, recursos científicos e técnicos para corrigir erros de um passado não muito longínquo. Como são mantidas e desenvolvidas as ambições que provocam guerras e devastações de toda a ordem, alimentamos, na opinião pública, a convicção de que não existem alternativas.

2. O Papa Francisco sonha com os olhos abertos. Sabe que não é, apenas, com as suas Exortações Apostólicas, Encíclicas, Discursos, Encontros ecuménicos e inter-religiosos, Declarações e Entrevistas, que pode suscitar mudanças de rumo de cuja urgência não desiste [2].
Com a sua linguagem nova e a problematização de falsas evidências, tem procurado mostrar que a Igreja deve ajudar a repensar tudo. Mas é especialmente com os seus gestos e atitudes, perante situações que parecem becos sem saída, que ele insiste, com os seus irmãos no episcopado e com toda a Igreja – crianças, adolescentes, jovens e adultos – que são possíveis mudanças que provoquem um sobressalto na sociedade.
Pode parecer ingenuidade. Mas ele não esquece que as parábolas de Cristo, trabalhadas por quem redigiu as quatro narrativas do Evangelho, não são triunfalistas. Por exemplo, as parábolas do fermento e a do grão de mostarda procuram não desencorajar as iniciativas que não se apresentam como êxitos imediatos, vistosos, convincentes.
No seu escrito mais recente [3], ele próprio pergunta: “Ainda poderemos acreditar na possibilidade de um mundo novo, mais justo e fraterno? Poderá esperar-se, verdadeiramente, uma transformação das sociedades em que vivemos, onde não seja a lei do deus dinheiro a dominar, mas o respeito pela pessoa, numa lógica de gratuidade? Teremos de assumir que o mundo é imodificável, com as suas injustiças que ‘gritam vingança na presença de Deus'? E a nós, homens de Igreja, resta-nos apenas a tarefa de pregar, com passiva resignação ou enunciar, como repetitiva obrigação, princípios tão verdadeiros quanto abstractos?”
“No entanto, nenhuma mente honesta pode negar a força transformadora do cristianismo no devir da história. Todas as vezes que a vida cristã se difundiu na sociedade, de maneira autêntica e livre, deixou sempre um traço de humanidade nova no mundo. Desde os primeiros séculos.”
O lançamento da Economia de Francesco pretende reatar essa tradição dos começos cristãos, pois o escândalo das evidentes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de desigualdades entre países ricos e países pobres ou de desigualdades entre classes sociais no âmbito do mesmo território nacional – não é tolerável.
O Papa sabe que essa iniciativa é apenas um pouco de fermento, uma pequeníssima semente. Não é o mundo transformado. Na história humana, as grandes transformações não começaram pelo fim. Este é o primeiro desejado e o último conseguido.

3. Ao chegar a este ponto, recebi a notícia da morte de Eduardo Lourenço, um grande amigo de há muitos anos. Ajudou-nos a não repousar em certezas proclamadas de autores consagrados. A sua provocação cultural e cívica exige, não só estudiosos da sua obra, mas pessoas desafiadas a irem sempre mais longe e em muitas direcções. Provocou o catolicismo em que cresceu, até aos primeiros anos da Universidade de Coimbra, onde frequentou o C.A.D.C. e cuja Teologia apologética o desgostou.
O próprio Eduardo Lourenço explicou, muitas vezes e de muitos modos, o sentido da sua Heterodoxia (I e II). Acompanhou-o sempre a insepulta nostalgia de Deus [4]. Para ele, o Cristianismo não é uma religião. Mas a exigência “religiosa” específica do Cristianismo é a crítica radical do Poder pelo amor dos outros e, mais radicalmente, crítica de um Deus-Poder [5]. Para ele, “Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. (…) Foi crucificado não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição” [6].
É preciso estudar o seu legado teológico, disperso por muitos lugares, para entender o que era e é a sua referência cristã. Precisamos deste cristão.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf. Jürgen Habermas, O Futuro da Natureza Humana, Almedina, 2006, p. 77
[2] Exortações Apostólicas: Evangelli Gaudium (2013), Amoris laetitia (2016), Gaudete et exsultate (2018), Christus vivit (2019), Querida Amazónia (2020); Encíclicas: Laudato Si’ (2015), Fratelli tutti (2020)
[3] Cf. Il Cielo sulla Terra, Editrice Vaticana, 2020. Cf. Pastoral da Cultura, 24.11.2020
[4] Cf. Eduardo Lourenço, Heterodoxia II, Gradiva, 2006, p.47
[5] Cf. Eduardo Lourenço, Religião – Religiões – Laicidade, in Seminário Internacional Europa e Cultura 1998, Gulbenkian, pp. 71-78
[6] E. Lourenço, in Opção n.º 97, Março 1978, 2-8

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue