Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
O “inferno” em que transformámos o nosso planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação absurda.
1. Segundo um conhecido conto judaico, um rabino fez a Deus o seguinte pedido: “Deixa-me ir dar uma vista de olhos pelo céu e pelo inferno.” O pedido foi aceite e Deus enviou-lhe, como guia, o profeta Elias.
O profeta levou o rabino a uma grande sala. No centro ardia um fogo que aquecia uma panela enorme, com um guisado que enchia o ambiente com o seu aroma.
À volta estava toda a gente pronta a servir-se, com uma grande colher na mão. Apesar disso, viam-se as pessoas esfomeadas, macilentas, sem forças, a cair.
As colheres eram mais compridas do que os seus braços, de tal modo que não as conseguiam levar à boca. As pessoas estavam tristes, desejosas e em silêncio, de olhar perdido.
O rabino, espantado e comovido, pediu para sair desse lugar espectral. De inferno já tinha visto o suficiente.
O profeta levou-o então a outra sala. Ou talvez fosse a mesma. Tudo parecia exactamente igual: a panela ao lume, com apetitosas iguarias, a gente à volta com grandes colheres na mão. Via-se que estavam todas a comer com gosto, alegres, com saúde, cheias de vida. A conversa e as gargalhadas enchiam a sala. Isto tinha que ser o paraíso! Mas, como é que se tinha conseguido uma tal transformação?
As pessoas tinham-se voltado umas para as outras e usavam a enorme colher para levar comida a quem estava à sua frente, procurando que a outra ficasse satisfeita e assim acabavam por ficar todas bem!
Mesmo quem acha piada a este conto observa que não se lhe deve pedir demasiado: reproduz uma concepção demasiado simplista, sem interesse num mundo espantosamente complexo. As boas parábolas são paradoxais, enigmáticas e de inesgotáveis leituras.
Nem sempre. Este conto não se apresenta como uma teoria económica, financeira, jurídica para a organização da sociedade ou do Estado. Gosto do seu humor e da sua aparente ingenuidade. Não está nada longe da antropologia e da ética do filósofo alemão, Jürgen Habermas, ao mostrar que a vida do ser humano só se realiza na interacção com os outros [1].
O “inferno” em que transformámos o nosso planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação absurda. O destino universal dos bens faz parte da Doutrina Social da Igreja. Se fosse praticado, podia fazer deste mundo um paraíso do qual nos continuamos a expulsar. Existem, hoje, recursos científicos e técnicos para corrigir erros de um passado não muito longínquo. Como são mantidas e desenvolvidas as ambições que provocam guerras e devastações de toda a ordem, alimentamos, na opinião pública, a convicção de que não existem alternativas.
2. O Papa Francisco sonha com os olhos abertos. Sabe que não é, apenas, com as suas Exortações Apostólicas, Encíclicas, Discursos, Encontros ecuménicos e inter-religiosos, Declarações e Entrevistas, que pode suscitar mudanças de rumo de cuja urgência não desiste [2].
Com a sua linguagem nova e a problematização de falsas evidências, tem procurado mostrar que a Igreja deve ajudar a repensar tudo. Mas é especialmente com os seus gestos e atitudes, perante situações que parecem becos sem saída, que ele insiste, com os seus irmãos no episcopado e com toda a Igreja – crianças, adolescentes, jovens e adultos – que são possíveis mudanças que provoquem um sobressalto na sociedade.
Pode parecer ingenuidade. Mas ele não esquece que as parábolas de Cristo, trabalhadas por quem redigiu as quatro narrativas do Evangelho, não são triunfalistas. Por exemplo, as parábolas do fermento e a do grão de mostarda procuram não desencorajar as iniciativas que não se apresentam como êxitos imediatos, vistosos, convincentes.
No seu escrito mais recente [3], ele próprio pergunta: “Ainda poderemos acreditar na possibilidade de um mundo novo, mais justo e fraterno? Poderá esperar-se, verdadeiramente, uma transformação das sociedades em que vivemos, onde não seja a lei do deus dinheiro a dominar, mas o respeito pela pessoa, numa lógica de gratuidade? Teremos de assumir que o mundo é imodificável, com as suas injustiças que ‘gritam vingança na presença de Deus'? E a nós, homens de Igreja, resta-nos apenas a tarefa de pregar, com passiva resignação ou enunciar, como repetitiva obrigação, princípios tão verdadeiros quanto abstractos?”
“No entanto, nenhuma mente honesta pode negar a força transformadora do cristianismo no devir da história. Todas as vezes que a vida cristã se difundiu na sociedade, de maneira autêntica e livre, deixou sempre um traço de humanidade nova no mundo. Desde os primeiros séculos.”
O lançamento da Economia de Francesco pretende reatar essa tradição dos começos cristãos, pois o escândalo das evidentes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de desigualdades entre países ricos e países pobres ou de desigualdades entre classes sociais no âmbito do mesmo território nacional – não é tolerável.
O Papa sabe que essa iniciativa é apenas um pouco de fermento, uma pequeníssima semente. Não é o mundo transformado. Na história humana, as grandes transformações não começaram pelo fim. Este é o primeiro desejado e o último conseguido.
3. Ao chegar a este ponto, recebi a notícia da morte de Eduardo Lourenço, um grande amigo de há muitos anos. Ajudou-nos a não repousar em certezas proclamadas de autores consagrados. A sua provocação cultural e cívica exige, não só estudiosos da sua obra, mas pessoas desafiadas a irem sempre mais longe e em muitas direcções. Provocou o catolicismo em que cresceu, até aos primeiros anos da Universidade de Coimbra, onde frequentou o C.A.D.C. e cuja Teologia apologética o desgostou.
O próprio Eduardo Lourenço explicou, muitas vezes e de muitos modos, o sentido da sua Heterodoxia (I e II). Acompanhou-o sempre a insepulta nostalgia de Deus [4]. Para ele, o Cristianismo não é uma religião. Mas a exigência “religiosa” específica do Cristianismo é a crítica radical do Poder pelo amor dos outros e, mais radicalmente, crítica de um Deus-Poder [5]. Para ele, “Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. (…) Foi crucificado não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição” [6].
É preciso estudar o seu legado teológico, disperso por muitos lugares, para entender o que era e é a sua referência cristã. Precisamos deste cristão.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. Jürgen Habermas, O Futuro da Natureza Humana, Almedina, 2006, p. 77
[2] Exortações Apostólicas: Evangelli Gaudium (2013), Amoris laetitia (2016), Gaudete et exsultate (2018), Christus vivit (2019), Querida Amazónia (2020); Encíclicas: Laudato Si’ (2015), Fratelli tutti (2020)
[3] Cf. Il Cielo sulla Terra, Editrice Vaticana, 2020. Cf. Pastoral da Cultura, 24.11.2020
[4] Cf. Eduardo Lourenço, Heterodoxia II, Gradiva, 2006, p.47
[5] Cf. Eduardo Lourenço, Religião – Religiões – Laicidade, in Seminário Internacional Europa e Cultura 1998, Gulbenkian, pp. 71-78
[6] E. Lourenço, in Opção n.º 97, Março 1978, 2-8