«Quando passei na Gafanha [1922], vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na água a rapar o moliço. Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: – Tem para aí treze ou catorze anos. – Tenho vinte e um, e três filhos, respondeu. – Outra tinha ficado a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mãos postas sobre os seios redondinhos – sobre aquilo, como diz a Ti Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa…
A ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, é um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo areal, e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil há muitos anos (— É o rei dos homes!... —), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenças, lutos. Nunca desanimou. A força que a sustenta é admirável, profunda e radicada, como a de quase todas as mulheres do povo que conheço. Deitou-se à vida — lavrou campos. Vieram mais aflições e outras mortes.
— Então de que lhe morreram os filhos?
— Sei lá, a morte não se quer culpada. Era preciso sustentar a família. Pegou nos bois e no carrinho e começou a transportar sal da Gafanha para Mira. Fez mais: antigamente no Arião também havia companhas, e quando faltava um pescador a ti Ana agarrava-se ao remo como um homem e ia ao mar no barco. — Nem do diabo tenho medo. Só tenho medo aos cães loucos.
— A extensa planície que atravessa, duas, três vezes por dia, é um deserto. A Ti Ana vai e vem de noite, sozinha, com os bois que lhe fazem companhia. Agora tem um campo, barcos para o moliço, novos netos para criar — e olha cara a cara o destino sem esmorecer. A sua vida é uma grande lição de energia.»
Raul Brandão,
in “Os Pescadores”
Nota: Para não cair no esquecimento