terça-feira, 6 de junho de 2023

VIDA PARA VIVER!

Crónica de Guilherme d'Oliveira Martins 
no Diário de Notícias 

"Quando se diz que alguma coisa está velha seja gente, seja um pano, seja uma mesa, o que se refere é o tempo de serviço que ela durou. Temos a mania, que felizmente está acabando, que a vida se fez para trabalhar, que a vida se fez para prestar serviço e não que a vida se fez para viver"

Agostinho da Silva, saudoso amigo, considerou até ao fim que a paixão pela vida era necessária e suficiente para nos mantermos vivos, e assim com ele aconteceu. Lembro as amenas conversas na Travessa do Abarracamento de Peniche e o seu permanente e entusiástico interesse pelos temas mais diversos, da História à atualidade, da ciência à tecnologia. E repetia: "Quando se diz que alguma coisa está velha seja gente, seja um pano, seja uma mesa, o que se refere é o tempo de serviço que ela durou. Temos a mania, que felizmente está acabando, que a vida se fez para trabalhar, que a vida se fez para prestar serviço e não que a vida se fez para viver". E recordava que as pessoas são sobretudo educadas para o trabalho, e quando sentem que já não estão na idade de trabalho, começam a nada ter que fazer e o tempo livre inexoravelmente esmaga-nos. O meu amigo Eduardo Paz Ferreira acaba de publicar um pequeno livro bem elucidativo sobre este tema que merece leitura atenta. Intitulou-o Devo Fechar a Porta? discorrendo sobre os "tempos de idadismo e outros ismos" e sobre "o momento da reforma na sociedade da eterna juventude". E a resposta é claríssima: "Continuar sempre. Não dizer adeus".

Agostinho da Silva


Eduardo, com o habitual rigor, o sentido prático e a preocupação didática que lhe conhecemos de há muito, aborda o tema da idade e envelhecimento, invocando o problema demográfico atual e as suas consequências. E refere um célebre texto de John Maynard Keynes, que muitos não compreenderam quando foi publicado e que continua a suscitar muitas dúvidas. Em Possibilidades Económicas para os Nossos Netos (1930), o genial pensador prevê que no futuro, graças à evolução tecnológica, se possa trabalhar apenas quinze horas por semana, consagrando o tempo sobrante à cultura, à família, à conversa com os outros e às viagens. Em vez de uma evolução natural neste sentido, temos assistido a confrontos e divisões, e à prevalência do egoísmo, da ambição e da ganância. Contudo, a profecia continua de pé, exigindo-se um caminho de "sustentabilidade cultural" e de desenvolvimento humano, que permita superar a avareza, a usura e a cautela, usando-as apenas para que sejamos "conduzidos através do túnel da necessidade económica em direção à luz". "Não haverá mal nenhum em fazermos alguns preparativos para o nosso destino futuro, cultivando e experimentando a arte de bem viver, e procurando simultaneamente atividades com propósito". Longe de uma utopia vã, tratar-se-ia de colocar a ciência económica, a experiência e a inovação, ao serviço das pessoas. Para tanto, importa compreender que a vida não deve subordinar-se a prazos de validade, e que o "idadismo" (ageing) tem dado lugar a uma inaceitável discriminação, idêntica ao racismo e ao sexismo.

A idade não deve ser "usada para categorizar e dividir as pessoas de maneira a causar prejuízos, desvantagens e injustiças, e para arruinar a solidariedade entre gerações". Eis por que a Década das Nações Unidas sobre o Envelhecimento Saudável (2023-2030) deve ser encarada a sério. Não esqueçamos que Cícero disse, como Platão, que "a velhice terá a forma e a substância que cada um lhe der, dependendo do que decida fazer com a própria vida. Esta é assim, dependente da vontade e da ação humanas". E Séneca afirmou a Lucílio: "Abracemo-la, apreciemo-la: se a soubermos usar, a velhice é uma fonte de prazer". E perguntava: "Queres saber qual a diferença entre um homem enérgico, que despreza a fortuna, cumpre todos os deveres inerentes à vida humana e assim se alça ao seu supremo bem, e um outro por quem simplesmente passam numerosos anos? O primeiro continua a existir depois da morte, o outro já estava morto antes de morrer". Entre o registo memorialista, a evocação de amigos comuns como José Medeiros Ferreira e Mário Mesquita, estamos perante uma reflexão séria e urgente. O que devemos fazer "não é escolher os que têm de morrer, mas identificar formas de conseguirmos todos sobreviver".

Guilherme d'Oliveira Martins no Diário de Notícias 

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