Crónica de Guilherme d'Oliveira Martins
no Diário de Notícias
"Quando se diz que alguma coisa está velha seja gente, seja um pano, seja uma mesa, o que se refere é o tempo de serviço que ela durou. Temos a mania, que felizmente está acabando, que a vida se fez para trabalhar, que a vida se fez para prestar serviço e não que a vida se fez para viver"
Agostinho da Silva, saudoso amigo, considerou até ao fim que a paixão pela vida era necessária e suficiente para nos mantermos vivos, e assim com ele aconteceu. Lembro as amenas conversas na Travessa do Abarracamento de Peniche e o seu permanente e entusiástico interesse pelos temas mais diversos, da História à atualidade, da ciência à tecnologia. E repetia: "Quando se diz que alguma coisa está velha seja gente, seja um pano, seja uma mesa, o que se refere é o tempo de serviço que ela durou. Temos a mania, que felizmente está acabando, que a vida se fez para trabalhar, que a vida se fez para prestar serviço e não que a vida se fez para viver". E recordava que as pessoas são sobretudo educadas para o trabalho, e quando sentem que já não estão na idade de trabalho, começam a nada ter que fazer e o tempo livre inexoravelmente esmaga-nos. O meu amigo Eduardo Paz Ferreira acaba de publicar um pequeno livro bem elucidativo sobre este tema que merece leitura atenta. Intitulou-o Devo Fechar a Porta? discorrendo sobre os "tempos de idadismo e outros ismos" e sobre "o momento da reforma na sociedade da eterna juventude". E a resposta é claríssima: "Continuar sempre. Não dizer adeus".
Eduardo, com o habitual rigor, o sentido prático e a preocupação didática que lhe conhecemos de há muito, aborda o tema da idade e envelhecimento, invocando o problema demográfico atual e as suas consequências. E refere um célebre texto de John Maynard Keynes, que muitos não compreenderam quando foi publicado e que continua a suscitar muitas dúvidas. Em Possibilidades Económicas para os Nossos Netos (1930), o genial pensador prevê que no futuro, graças à evolução tecnológica, se possa trabalhar apenas quinze horas por semana, consagrando o tempo sobrante à cultura, à família, à conversa com os outros e às viagens. Em vez de uma evolução natural neste sentido, temos assistido a confrontos e divisões, e à prevalência do egoísmo, da ambição e da ganância. Contudo, a profecia continua de pé, exigindo-se um caminho de "sustentabilidade cultural" e de desenvolvimento humano, que permita superar a avareza, a usura e a cautela, usando-as apenas para que sejamos "conduzidos através do túnel da necessidade económica em direção à luz". "Não haverá mal nenhum em fazermos alguns preparativos para o nosso destino futuro, cultivando e experimentando a arte de bem viver, e procurando simultaneamente atividades com propósito". Longe de uma utopia vã, tratar-se-ia de colocar a ciência económica, a experiência e a inovação, ao serviço das pessoas. Para tanto, importa compreender que a vida não deve subordinar-se a prazos de validade, e que o "idadismo" (ageing) tem dado lugar a uma inaceitável discriminação, idêntica ao racismo e ao sexismo.
A idade não deve ser "usada para categorizar e dividir as pessoas de maneira a causar prejuízos, desvantagens e injustiças, e para arruinar a solidariedade entre gerações". Eis por que a Década das Nações Unidas sobre o Envelhecimento Saudável (2023-2030) deve ser encarada a sério. Não esqueçamos que Cícero disse, como Platão, que "a velhice terá a forma e a substância que cada um lhe der, dependendo do que decida fazer com a própria vida. Esta é assim, dependente da vontade e da ação humanas". E Séneca afirmou a Lucílio: "Abracemo-la, apreciemo-la: se a soubermos usar, a velhice é uma fonte de prazer". E perguntava: "Queres saber qual a diferença entre um homem enérgico, que despreza a fortuna, cumpre todos os deveres inerentes à vida humana e assim se alça ao seu supremo bem, e um outro por quem simplesmente passam numerosos anos? O primeiro continua a existir depois da morte, o outro já estava morto antes de morrer". Entre o registo memorialista, a evocação de amigos comuns como José Medeiros Ferreira e Mário Mesquita, estamos perante uma reflexão séria e urgente. O que devemos fazer "não é escolher os que têm de morrer, mas identificar formas de conseguirmos todos sobreviver".
Guilherme d'Oliveira Martins no Diário de Notícias