sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Faz tudo bem feito. Abre-te

Reflexão de Georgino Rocha
para o Domingo XXIII do Tempo Comum

Fomos e regressámos da lua, mas temos enorme dificuldade em atravessar a rua para visitar o vizinho

O episódio do surdo-mudo ocorre na região da Decápole, situada além Jordão, território independente, habitada por gente pagã. A missão para Jesus não tem fronteiras nem faz discriminações, não se limita a confirmar o que há de bom no homem, mas visa iniciar uma nova criação. Mc 7, 31-37.
Marcos localiza Jesus na região de Tiro ( costa do atual Líbano) e quer ir para a Galileia. Faz um caminho que passa por Sídon (ainda na costa do Líbano) e pela Decálope («Dez cidades», zona da atual Síria e parte da Jordânia). Caminho que indicia a intenção do evangelista de apresentar Jesus como o missionário do Pai que visita todos os territórios pagãos e, neles, todos os homens que estão à espera de salvação.
O episódio do surdo-mudo constitui uma expressiva mensagem, valiosa para todos os tempos, mas sobretudo para os nossos, tão profundamente marcados pela surdez e incomunicação generalizadas, na era em que torrentes de informação circulam sem limites de qualquer espécie.
“Fomos e regressámos da lua, mas temos enorme dificuldade em atravessar a rua para visitar o vizinho. Conquistámos o espaço exterior, mas não o interior. Fizemos mais material electrónico e guardamos enormes quantidades de informação, mas comunicamo-nos menos. Estamos à distância de um clique e a milhares de léguas de proximidade afectiva e compreensiva. Sentimos a necessidade compulsiva de viver os impulsos da conexão (estar conectados) e somos frequentemente insensíveis aos apelos da consciência ferida pela voz de familiares esquecidos”. Estes contrastes são apenas flashes de uma imagem da “multidão solitária” que predomina e cresce na era das comunicações.
O surdo-mudo, como pessoa real, é um símbolo humano, representante silencioso e eloquente de uma realidade bloqueadora das capacidades relacionais. Vive isolado no seu mundo fechado, apesar da multidão que, deambulando nos caminhos da vida, passa por ele e o vê, está incapacitado de sair da sua situação, é pagão e vive num território estrangeiro. Símbolo pessoal e colectivo de uma sociedade com tremendos contrastes: mais dados de informação e instrução e menos comunicação e sabedoria da vida; casas maiores e famílias mais reduzidas; mais medicamentos e menos saúde e bem-estar. edifícios altos e casas fechadas; auto-estradas amplas e estreiteza de horizontes; mais dinheiro em circulação e menos posses; mais coisas ao dispor e menos tempo para desfrutar do seu bom uso. Menos sentido humanizante para viver.
Jesus acolhe o surdo-mudo que lhe apresentam. Há sempre alguém, felizmente, que se deixa condoer e põe “mãos à obra”. Retira-se com ele e, por meio de gestos normais e familiares para os destinatários do evangelho de Marcos, que viviam no meio da cultura helénica, realiza a cura, abrindo os ouvidos e soltando os entraves da língua. “Efatá!”, abre-te a uma nova realidade, vê quem te rodeia e contigo quer caminhar, ouve o falar das pessoas, admira o cantar das aves e a beleza dos céus, sonha para além das aparências, entra no mundo novo. Em ti começou germinalmente a nova criação que será consumada na cruz florida da ressurreição.
Na celebração do batismo há o rito do Efatá, acompanhado da oração: “O Senhor que fez ouvir os surdos e falar os mudos, te conceda a graça de escutar a sua Palavra e proclamar a fé para louvor e glória de Deus Pai”.
Reconhecendo esta graça em nós, peçamos ao Senhor Jesus que nos toque o coração e faça ouvir a sua Palavra e descobrir o seu sentido real, não apenas literal;
Nos toque os lábios e faça entusiastas mensageiros da sua misericórdia junto dos que vivem amargurados e perderam o sentido da vida e o gosto de viver.
Nos toque as mãos e as abençoe para serem mãos de bênção, em tudo e nos tornemos generosos na prática do bem iluminado pela verdade que liberta.
Nos toque os pés e os faça percorrer os caminhos da paz assente no amor e na justiça, como fez a Teresa de Calcutá que durante 50 anos carregou os que ninguém queria, os moribundos das ruas em Bombaím e lhes arranjou um abrigo de acolhimento humano condigno
Demos graças ao Senhor que não desiste de nós, apesar das nossas fragilidades e reconheçamos como Santo Agostinho no livro das Confissões: “Chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e dissipastes a minha cegueira. Exalastes sobre mim o vosso perfume. aspirei-o profundamente, e agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e agora desejo ardentemente a vossa paz”.

Pe. Georgino Rocha

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