Reflexão de Georgino Rocha
para o Domingo XXII do Tempo Comum
Jesus é um homem livre entranhavelmente apaixonado por instaurar na terra o reino de Deus. Defende a autêntica tradição de Moisés, anuncia a novidade de que é portador e não teme que o contradigam ou reajam contra. Vive em liberdade interior plena no contacto com os excluídos da sociedade, os pecadores, os impuros legais: leprosos, prostitutas, enfermos, pagãos. Acolhe as oportunidades ou provoca-as para “marcar posição” e anunciar a verdade. É o caso narrado, hoje, no Evangelho, dos fariseus e dos doutores da lei que, mais uma vez, lhe saem ao caminho. - Mc 7, 1-8. 14-15. 21-23
Os primeiros, muito zelosos em manter as tradições e em as observar escrupulosamente; os segundos, conhecedores da Lei e das suas centenas de normas que examinam até ao pormenor. Reúnem-se à volta de Jesus, num espaço fora da sinagoga. Ao verem a atitude dos discípulos – comer sem lavar as mãos, atitude que contagia os alimentos, tornando-os impuros e, por isso, contrariando a tradição -, pedem-lhe explicações com a pergunta inquisitorial: Porque procedem assim, não respeitando os antigos nem as suas tradições sagradas?
A resposta de Jesus lembra-lhes a profecia de Isaías: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Não adianta prestarem-me culto, porque ensinam preceitos humanos. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. E aduz o exemplo concreto do Corbã – voto feito por alguém que dedicava ao Templo os bens pessoais (coisa aparentemente bela e louvável), ainda que os pais sofressem grandes necessidades e viessem a morrer de fome. “E fazeis muitas outras coisas como estas”.
O grupo dos doutos e zelosos interlocutores vê-se contraditado no seu próprio campo: o das tradições e leis, o de ter uma vida divorciada da religião, o de negar, com a prática, o preceito de Deus. E para ilustrar este contra-senso, Jesus conta uma parábola aberta à multidão sobre o alimento que se come, vai para o estômago e depois sai naturalmente transformado em imundice. É dentro que se gera a pureza/virtude e não no exterior, no coração/na consciência e não na aparência – mesmo vistosa e com ares sagrados-, na sintonia com os princípios/mandamentos de Deus e não com interpretações – ainda que doutas – de ocasião, acomodadas às conveniências religiosas, sociais e políticas ou às modas auto-denominadas progressistas e inovadoras.
O centro da nova moralidade, que Jesus anuncia e condiz com o melhor da dignidade humana, está na consciência iluminada não apenas pela natureza nem pela sabedoria das culturas ou dos direitos fundamentais do Homem, mas pela Palavra de Deus, assumida na sua integridade e fielmente interpretada. Consciência que pondera os elementos de que dispõe, que se abre à verdade da razão esclarecida, que valora as circunstâncias em que se situa, que faz opções coerentes e consistentes, que não abdica da sua dignidade, mesmo em caso de perigo de vida. Sirva de ilustração Sócrates, o filósofo, Jesus Cristo, Tomás Moro e tantos contemporâneos mártires por causas nobres/santas.
“Trata-se, pois, de uma chamada à sinceridade, ao cuidado do coração para que não esteja vazio, nem endurecido, mas povoado pelas inspirações de Deus, que são as que nos fazem sair da única referência a nós mesmos para escutar a voz dos outros… refere a Homilética, e o Papa Francisco, por sua vez, esclarece: “Há maneiras de viver a fé que facilitam a abertura do coração aos irmãos, e essa será a garantia de uma autêntica abertura a Deus”. Todos Irmãos” 74.
É de dentro do coração da pessoa que sai o que degrada ou enobrece a dignidade humana, mantém a integridade moral, manifesta a sua sintonia com o ritmo do “coração” de Deus que, em Jesus Cristo, define as novas regras de apreciação da bondade e da maldade do agir pessoal e social, privado e público. Em todos os campos. A consciência constitui o âmbito do encontro da pessoa com Deus, encontro que se capta e manifesta por uma voz discreta, “audível” no silêncio e na palavra, na sensibilidade dos artistas e na contemplação dos orantes, nos gemidos das vítimas e nos gestos dos profetas. Jesus ensina-nos a cultivar a bondade do coração/consciência, para não sermos excêntricos, mas testemunharmos o valor do mundo interior de cada pessoa. Belo ensinamento que tanto nos responsabiliza.
“O encontro com Cristo… faz-nos descobrir uma grande chamada, a vocação ao amor, e assegura-nos que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento encontra-se na fidelidade de Deus, mais forte que toda a nossa fragilidade”. Lumen fidei, 53.
Pe. Georgino Rocha