sábado, 28 de novembro de 2020

O SENTIDO DA VIDA. 1. QUEM SOU?

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias 



A presente crise, gigantesca, deveria ser uma oportunidade para pôr de modo mais profundo a questão decisiva do sentido da vida. 
Sentido tem a ver com viagem, direcção, meta. Nas estradas, encontramos placas em seta a indicar o caminho para alcançar um destino. Agora, até programamos o GPS que nos levará lá. 
Qual é o sentido da vida e a sua meta? Num primeiro momento, a resposta parece clara: a vida é um milagre e o seu sentido é ela mesma. O sentido está nela, no viver plenamente, na criatividade do dar e receber, em plena e total inter-relação. 
Mas em nós a vida torna-se consciente. O ser humano é autoconsciente, consciente de si mesmo e, por causa da neotenia — ao contrário dos outros animais, não vimos já feitos ao mundo, mas por fazer, sendo a nossa missão fazermo-nos a nós mesmos, uns com os outros —, a questão do sentido da vida torna-se uma questão pessoal, essencial e inevitável. Não é uma questão adjacente, que possa colocar-se ou não. Ela é constitutiva: ser ser humano é levar consigo esta questão: quem somos?, donde vimos?, para onde vamos?, que devemos fazer?, que sentido dar à existência? 
Somos uns com os outros e frente aos outros, mas cada um de nós vive-se a si mesmo como presença de si a si mesmo como um eu único: eu sou eu e não outro. Coincidimos, portanto, connosco, mas, por outro lado, experienciamo-nos como ainda não plenamente idênticos: somos nós mesmos e somos chamados a ser nós mesmos; num apelo constante a fazermo-nos, estamos ainda a caminho de nos tornarmos nós mesmos. Lá está a tarefa paradoxal que nos pertence, segundo Píndaro: “Torna-te no que és.” Precisamente deste paradoxo de sermos e ainda não sermos adequada e plenamente surge a nossa inquietação radical e a pergunta que nos constitui: afinal, o que somos?, quem somos? Uma vez que estamos essencialmente voltados para o futuro, temos de dizer: eu venho de um passado e sou também resultado desse passado, vivo-me no presente, mas eu ainda não sou plenamente, eu ainda não sou o que serei. Cá está, portanto, a pergunta — e o ser humano é radicalmente perguntante, porque é perguntado —, a pergunta radical e ineliminável: então o que é que eu sou e quem sou? E esta pergunta não pode deixar de colocar a pergunta pelo sentido da vida, pois está em conexão com ela: só no processo do viver e do ir-me fazendo poderei ir sabendo quem sou. Mas fazer-me a caminho de quê? Qual é o sentido? Lá estão as inapagáveis perguntas de I. Kant: “Que posso saber? Que devo fazer? O que é que me é permitido esperar?”. E continua: se pudéssemos responder a estas três perguntas, encontraríamos resposta para a quarta, a decisiva: “O que é o Homem?” Afinal, o que somos e quem somos? 
O animal, cuja vida é assegurada por instintos, não faz perguntas. O Homem, porque é autoconsciente, inacabado e livre, precisa de saber em que sentido deve orientar a sua existência e quer saber quem é. 
Entre todos os seres da Terra, só o Homem é livre — Kant sugeriu que a liberdade é o divino em nós — e, assim, moral e responsável, só ele tem capacidade de racionalidade abstracta, de autoposse, de opção, só ele se sabe sujeito de obrigações morais para lá dos instintos, só ele pode rir e sorrir, só ele é animal simbólico e simbolizante, só ele pode amar, saber e saber que sabe, só ele é capaz de autoconsciência, de linguagem duplamente articulada, de sentido do passado e do futuro, de promessas, de criação e contemplação da beleza, de descida à sua intimidade e subjectividade pessoal, só ele sabe que é mortal e gasta tempo com os mortos e rituais funerários e espera para lá da morte, só ele pergunta e fá-lo ilimitadamente, só ele cria instituições jurídicas, só ele tem de confrontar-se com a questão da transcendência e do Infinito... Precisamente este conjunto de notas mostra que o ser humano é qualitativa e essencialmente distinto dos outros animais, a diferença não é apenas de grau, mas essencial. 
Impõe-se agora perguntar: para que tenha as capacidades que tem e faça tudo o que faz, qual é a sua constituição metafísica? Tem de haver um factor X que está na base de todas estas capacidades. Tradicionalmente, chamou-se-lhe alma. Dada a dificuldade, se não impossibilidade, de pensar hoje o dualismo corpo-alma, compreender o Homem para lá desse dualismo, sem cair no monismo idealista nem no reducionismo materialista mecanicista ou biologista, constitui tarefa ingente para a Filosofia. As investigações etológicas, bioquímicas, da genética, das neurociências constituem hoje talvez o maior desafio alguma vez lançado a uma concepção verdadeiramente humanista e espiritualista do Homem, por causa da tentação de reduzir o humano a uma explicação no quadro exclusivo do zoológico e bioquímico. De qualquer forma, ao Homem reflexivo impor-se-á sempre a subjectividade própria: por mais que objective de si, o sujeito humano deparará sempre com o inobjectivável, já que a condição de possibilidade de se conhecer objectivando-se é ele mesmo enquanto sujeito irredutível. Na reflexão, o Homem é o sujeito e o objecto do conhecimento: sujeito que se conhece como objecto, mas sem se reduzir a objecto. Enquanto sujeito transcenderá, portanto, continuamente a explicação das ciências objectivantes. Para aclarar um pouco a dificuldade do tema, costumo dizer: eu não posso ir à janela ver-me a passar na rua. 
Quem sou eu? Não sou coisa. O Homem não é mero objecto. Aí está o enigma, o mistério e a dignidade de um eu a caminho. 

Anselmo Borges no Diário de Notícias 

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue