domingo, 17 de março de 2019

Anselmo Borges - Seis anos depois: desafios para Francisco

Primeiro contacto com o povo depois da eleição


"Francisco prometeu que todos os acusados serão entregues à justiça. O abuso de menores e adultos vulneráveis é não só um pecado mas também um crime, que é obrigatório denunciar. Já não haverá lugar para os encobridores..."


1. Fez no passado dia 13 seis anos que Francisco, ao anoitecer em Roma, compareceu como novo Papa perante a multidão que o aguardava, saudando-a com um “boa noite” e pedindo-lhe a bênção, antes de ele próprio a abençoar. Que os cardeais o tinham ido buscar ao “fim do mundo”. Pelo nome, Francisco, lembrando Francisco de Assis, a quem Jesus crucificado tinha pedido que restaurasse a sua Igreja em ruínas, pelo novo estilo, pela humildade e simplicidade, ficou a percepção nítida de que iria estar a caminho um modo novo de pontificado papal: nem sequer se chamou Papa, mas Bispo de Roma, e era um pontífice, no sentido etimológico da palavra: alguém que quer estabelecer pontes. E o povo cristão e o mundo não se enganaram. O nome de Deus, foi dizendo Francisco ao longo destes anos, é Misericórdia. É necessário perceber que o princípio primeiro não é o cartesiano “penso, logo existo”, mas outro, mais essencial: “sou amado, logo existo”. E agir em consequência, e Francisco tem estado, por palavras e obras, junto de todos, a começar pelos mais frágeis, pelos abandonados, marginalizados, migrantes, pobres, pelos menos amados ou pura e simplesmente sem amor. Um cristão, que põe no centro Jesus Cristo e o seu Evangelho, notícia boa e felicitante, contra “a globalização da indiferença”. A Igreja não pode entender-se em auto-referencialidade, pois tem de estar permanentemente “em saída”, ao serviço da Humanidade, como “hospital de campanha”. A Igreja “somos nós todos” e, por isso, é preciso que caminhemos juntos, “em sinodalidade”. O poder só se legitima enquanto serviço e, assim, não se cansa de denunciar os bispos “príncipes e de aeroporto”. O clericalismo e o carreirismo são uma “peste” na Igreja, repete permanentemente. A Cúria, cujas doenças gravíssimas denuncia, precisa de uma reforma radical, tal como se impõe a transparência no Banco do Vaticano. A Igreja não pode viver obcecada com o sexo, havendo uma nova orientação neste domínio: pense-se na possibilidade da comunhão para os recasados, na nova atitude face aos homossexuais, na nova compreensão para as novas formas de casamento.
A Igreja tem de praticar no seu seio os direitos humanos que prega aos outros e, portanto, nunca mais houve condenação de teólogos; pelo contrário, escreveu a vários, que tinham sido condenados, elogiando e agradecendo o seu trabalho, como aconteceu, por exemplo, com Hans Küng ou José Maria Castillo. Francisco publicou uma encíclica de relevância global sobre o cuidado da casa comum, a ecologia e a salvaguarda da criação, Laudato sí, impulsionou o diálogo ecuménico com as outras Igreja cristãs, aprofundou o diálogo interreligioso, concretamente com o islão moderado, sendo exemplar a sua recente viagem histórica aos Emiratos Árabes Unidos, com a assinatura do “Documento sobre a Fraternidade Humana”, que aqui já referi. Como líder político-moral global, tem desempenhado papel relevante em processos de paz internacional. Não sem razão, Francisco é o líder mundial mais apreciado e estimado do mundo, segundo a Sondagem Mundial Anual de Gallup International, realizada em 57 países e publicada nos inícios de Fevereiro. Devo esta última informação a um texto de Hernán Reys Alcaide, subordinado ao tema dos desafios para Francisco neste seu sétimo ano como Papa, precisamente o ano que teve início no passado dia 13.

 2. Que desafios? Enuncio alguns. 

2.1. Perante o abismo da chaga da pedofilia do clero, Francisco tomou a iniciativa que se impunha: como dei amplo conhecimento aqui, convocou para o Vaticano os responsáveis máximos da Igreja, concretamente os presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo, membros da Cúria, representantes das Igrejas católicas do Oriente, representantes dos superiores e das superioras gerais de Congregações e Ordens religiosas. Homens e mulheres foram confrontados com testemunhos vivos de antigas vítimas, para que tomassem consciência da situação terrível que destruiu vidas e a fé de tantos e colocou a Igreja no fosso da descredibilização. A tragédia era inimaginável. Quem suporia que um cardeal, a terceira figura do topo da Igreja, o cardeal australiano George Pell, havia de estar condenado e preso na cadeia, por abuso de menores? Neste momento, 37% dos católicos norte-americanos põem a questão de abandonar a Igreja, por causa da pedofilia... Francisco prometeu que todos os acusados serão entregues à justiça. O abuso de menores e adultos vulneráveis é não só um pecado mas também um crime, que é obrigatório denunciar. Já não haverá lugar para os encobridores... Operou-se uma verdadeira revolução copernicana, no sentido de que agora o centro será ocupado pelas vítimas e a sua defesa e apoio sem tréguas. Desafio maior para Francisco neste novo ano de pontificado é o cumprimento da promessa da formação de um grupo de peritos multidisciplinar, de um novo “Motu Proprio”, decreto papal, para reforçar a prevenção e a luta contra a pedofilia e a protecção dos menores e pessoas vulneráveis, com medidas concretas, e de um “vade-mecum”, isto é, uma espécie de manual para orientação dos procedimentos dos bispos neste domínio. É imperioso e urgente que a Igreja se torne um lugar seguro para os menores, inclusivamente para ir ao encontro da vontade explícita e dramática de Jesus: “Ai de quem escandalizar uma criança. Era melhor atar-lhe a mó de um moinho à volta de pescoço e lançá-lo ao fundo do mar”. A Igreja tem de tornar-se exemplar, também para poder tornar-se credível na denúncia e na ajuda para a libertação de tantas crianças e adolescentes (centenas de milhões) que no mundo são vítimas de abusos sexuais, físicos e psicológicos, da fome e da guerra. Se não forem tomadas todas as medidas necessárias para acabar com esta brutalidade da pedofilia clerical, a Igreja caminhará não só para a sua irrelevância mas também para a sua autodestruição. 

2.2. Desafios ético-diplomático-políticos, concretamente em relação à China e à Venezuela. A situação na Venezuela é pura e simplesmente insuportável, a ponto de me perguntar como é possível, face à tragédia — não há de comer, não há remédios, não há electricidade, a fome campeia, não há liberdade... —, haver partidos que ainda apoiam e defendem Maduro. Que vai Francisco fazer, para intermediar o intolerável? Como vai Francisco conseguir implementar, em casos concretos, o acordo assinado com a China em Setembro passado para a nomeação conjunta dos bispos, depois de 60 anos de desencontros entre Roma e Pequim quanto a esta questão essencial para a Igreja? Xi Jinping passará por Roma em finais deste mês de Março. Será recebido pelo Papa? 

2.3. Está em processo de redacção uma nova Constituição Apostólica, Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho), para a Cúria Romana, governo central da Igreja. Que novas estruturas, que divisão de competências? Qual a presença e a participação de leigos, incluindo mulheres? Que descentralização, que relação com as Conferências Episcopais do mundo, com que competências para a participação no governo da Igreja universal? De qualquer modo, as Conferências Episcopais serão consultadas para a nova Constituição. 

2.4. Provavelmente, haverá um novo Consistório cardinalício, para a nomeação de novos cardeais. Quem? Com que orientação? E se o sucessor de Francisco, em vez de ser escolhido só por cardeais, o fosse por um colégio de representantes semelhante ao da Cimeira que se reuniu em Roma para pôr termo à pedofilia, portanto, mais representativo da Igreja universal, com a presença inclusivamente de mulheres? Aliás, um dos desafios para o novo ano tem a ver precisamente com a justa reivindicação de maior presença e participação das mulheres na Igreja nos seus vários níveis, incluindo na formação dos candidatos a padres. Francisco tem afirmado que a Igreja não pode continuar “machista”. 

2.5. Acontecimento de enorme relevância será o Sínodo para a Amazónia, de 6 a 27 de Outubro próximo, que não será fácil também por causa do novo Governo do Brasil com Jair Bolsonaro. De qualquer forma, é em conexão com este Sínodo que são referidas questões tão importantes como o lugar e a participação das mulheres nas decisões da vida da Igreja ou a possibilidade da ordenação de homens casados. É neste contexto que é necessário repensar a formação dos novos padres e a questão da lei do celibato obrigatório. Precisamente neste quadro e voltando à Igreja clerical e aos abusos sexuais e ao clericalismo, “peste” na Igreja, deixo aí, para reflexão final, um texto duro do teólogo José Arregi, que, depois de citar aquele dito de Francisco, pouco feliz, se não for entendido no seu contexto, de que “todo o feminismo é um machismo com saias”, escreveu: “Sim, o problema talvez tenha que ver com saias, mas com as saias do clero com sotaina. Tem muito que ver com o clericalismo que sacraliza e enaltece os clérigos, que exalta a figura desencarnada de Maria Mãe e Virgem para assim humilhar a mulher de carne e osso, que impõe o celibato como estado mais perfeito e sagrado, que ‘sacrifica’ o sexo a troco de poder sagrado e hierárquico, que reprime e por isso exacerba a sexualidade. O clericalismo é um sistema patogénico. E, enquanto não se libertar dele, esta Igreja não será crível nem um lugar habitável, por mais liturgia penitencial que ostente.” Entretanto, a Conferência Episcopal Alemã acaba de anunciar um debate interno sobre o celibato, o abuso de poder e a moral sexual na Igreja Católica, com base na Cimeira sobre a pederastia, há pouco realizada no Vaticano.

Anselmo Borges no DN

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