domingo, 17 de março de 2019

Bento Domingues - O impossível pode acontecer

Bento Domingues
"A situação actual dá a impressão de que os europeus se cansaram de 74 anos de paz e, agora, dão passos para barrar os caminhos da cooperação no desenvolvimento de todos. Parecem apostados em regressar, com novos moldes, a uma época de insensatez, em nome de um nacionalismo vesgo"

1. Em Guimarães, de 7 a 12 de Março deste ano, além de outros programas, a Biblioteca Municipal dedicou o Festival Literário, Húmus, a estudar Raul Brandão, uma das suas glórias. Participei, no dia 9, com Alberto S. Silva, numa Mesa de Debate sobre As Cruzadas vistas dos dois lados, moderada por Pedro Vieira. Estava anunciada nestes termos: “Durante séculos, cristãos e muçulmanos lutaram pela posse do território. Da época do Al-Andalus, seguido do período da Reconquista, às Cruzadas dos séculos XI a XIII, estes movimentos influenciaram em muito a história de Portugal e da Península Ibérica. Mas todas as histórias têm dois lados. Como são interpretados os factos históricos dos dois lados da barricada?” 
Esta interrogação envolve séculos de grandes realizações, destruições, confrontos, períodos de entendimentos e muita violência. As religiões foram texto e pretexto para alternadas dominações políticas, económicas e culturais. Não se pode esperar muito de uma mesa de diálogo amistoso com um tempo necessariamente limitado. Mas o tema devia tornar-se incontornável. António Borges Coelho ajudou-me a vencer a minha ignorância [1]. 
Apesar de tudo o que permanece oculto, até os mais cépticos concedem que o passado, quanto mais estudado, mais desmitificado. Esta é a tarefa dos historiadores, com os seus métodos de investigação e interpretação. O proveito é para todos os interessados em saber donde viemos [2]. 
Não podemos deixar que os confrontos entre religiões durmam o sono dos arquivos, memórias de outras épocas enterradas. Somos hoje testemunhas de tragédias que continuam a desenhar mapas de sangue e crueldade. Podemos e devemos admirar castelos, fortalezas e prisões de tempos guerreiros por razões de ordem estética, científica e moral. Mas agrada-me sempre mais ver, nas relações de Portugal com os reinos de Espanha, castelos e fortalezas transformados em pousadas, do que apenas testemunhos de ignorâncias e ressentimentos não resolvidos. 
É preferível deixar para os vindouros gestos, monumentos, tratados de paz, do que a tristeza de não nos reconhecermos nas nossas irredutíveis diferenças. Passar de um mundo de afrontamentos para uma época de cooperação é o grande sonho de quem não é louco. À epidemia ideológica de vários nacionalismos é preciso responder com realidades e gestos criadores de esperança activa. No momento, em que as narrativas de corrupção tendem a criar a ideia do inevitável, importa encontrar os meios, as práticas e a cultura de que o normal, o mais corrente, é a honestidade pessoal e a observância das boas regras nas instituições públicas e privadas. 
Nesse caminho, deparamos com pequenos e grandes sinais. No campo católico, nunca poderei esquecer os gestos e as atitudes de coragem de Papa João XXIII que desejava, dentro e fora das Igrejas, suscitar uma corrente universal de seres humanos de boa vontade. Enquanto europeus, como podemos esquecer os confrontos monstruosos de duas guerras mundiais, os muros levantados, os muros caídos e os reerguidos? A situação actual dá a impressão de que os europeus se cansaram de 74 anos de paz e, agora, dão passos para barrar os caminhos da cooperação no desenvolvimento de todos. Parecem apostados em regressar, com novos moldes, a uma época de insensatez, em nome de um nacionalismo vesgo. 

2. O que me interessou em Guimarães, e que sempre me acompanha, é procurar entender um grande tema da Quaresma: as tentações que assaltaram o projecto libertário de Jesus [3]. S. Lucas observa que a condição humana, reafirmada em Jesus, é uma condição sempre tentada. Estamos sempre a ser solicitados para caminhos cegos. Não bastam uns exercícios espirituais para nos julgarmos confirmados em graça. 
É uma banalidade dizer que só cada um sabe aquilo que o tenta, o que o leva a enganar-se acerca do que é melhor para a sua vida e para a felicidade dos outros. Se a natureza, como dizia Tomás de Aquino, na maior parte dos casos, bate certo, o ser humano parece que, na maior parte dos casos, segue a rota dos seus apetites desorientados, sem cuidar do que interessa à sua realização verdadeiramente humana [4]. As grandes tentações que percorrem a história humana são do tipo das que envolveram Jesus Cristo, na sua vontade de virar o mundo do avesso. A figura do Diabo, como sabemos, é a expressão da ruptura com os grandes sonhos da humanidade. Troca o desejo de servir, o desenvolvimento harmónico de todos pela vontade de dominar. Seja na família, na escola, na freguesia, na empresa, no conjunto do país o que muitos procuram é o poder de dominar, de submeter os outros aos seus interesses mais ridículos. Importa ter boas leis, ter um bom sistema de saúde, de educação, de regime político, mas se aqueles que devem servir o interesse comum se aproveitam para fins privados o que é de todos, quem manda é o poder de corromper ou de se deixar corromper. 

3. Neste século XXI revelou-se no mundo do sagrado, ou assim julgado, algo de muito banal: nas religiões, nas Igrejas e no interior de cada religião e de cada igreja, a vontade de dominação continua a corromper o que, em cada uma, há de melhor. Em nome de causas sagradas sacralizam-se as astúcias da corrupção, muitas vezes, dentro de uma congregação religiosa, de uma comunidade, de uma paróquia, de uma diocese e até dentro do Vaticano se desvia o rumo para que estas instituições nasceram. Mas não há só crimes a lamentar! 
Aconteceu o que nunca se julgou possível. Já toda a gente ouviu falar dos diálogos ecuménicos entre as Igrejas cristãs e de diálogo inter-religioso entre as diversas configurações religiosas, quer a nível local, quer global. Nesses acontecimentos de diálogo inter-religioso o mais frequente é o aproveitamento para cada um dos intervenientes mostrar a excelência da sua organização. São todas tão boas que nem se percebe porque é que não dialogam mais. Esquece-se que esses encontros deviam ser também de autocrítica e de procura de caminhos de cooperação, não para prestígio dessas organizações, mas para bem dos que mais precisam. 
O que parecia inacreditável aconteceu! Em Abu Dhabi, o Papa Francisco e o Grão Imame de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb assinaram um compromisso de desenvolver um processo que leve católicos e muçulmanos a lutarem pela defesa da Casa-Comum e de toda a humanidade. Que as religiões cuidem das religiões nem sempre acontece, mas seria o normal. Agora, que as religiões digam que não é para cuidar delas que existem, vai obrigar crentes e não crentes a perguntar: então para que é a religião? 

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

[1] Portugal na Espanha Árabe, 3ª edição revista, Caminho, 2008 
[2] António Borges Coelho, Donde Viemos - História de Portugal I, Caminho 2010 
[3] Mt 4, 1-11; Mc 1, 12s; Lc 4, 1-13; 1Pd 5, 8-11 
[4] Summa Theologiae, I q.49, a.3 ad 5

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue