Guerra Junqueiro |
Regresso ao Lar
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...
Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...
Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!
Guerra Junqueiro, in 'Os Simples'
NOTA: Ontem à noite prossegui a leitura de as Memórias de Raul Brandão (três volumes num só), livro que Pedro Mexias, crítico literário, destaca como a edição de 2017. Raul Brandão descreve a vida do seu tempo com arte, saber e graça. Ao evocar a vida e obra de Guerra Junqueiro, trouxe-me a singeleza de alguns poemas e textos do grande escritor, poeta, diplomata, pensador, visionário e precursor da República. Um homem do seu tempo, com paixões variadas. A agricultura, em especial a vinha, o colecionador com paixão pelas obras de arte, o incréu da Velhice do Padre Eterno até ao crente franciscano, com a sua filosofia e a poesia de Os Simples. E de repente, regressei a um poema que cheguei a dizer de cor, há décadas. Aqui o partilho com os meus amigos.