Crónica de Frei Bento Domingues
no Público
Este Papa não é escravo do passado,
não fica cego pela última moda,
nem remete tudo para o futuro
1. Não gosto muito dos livros de homilias. Extinta a luz e o calor da comunicação directa – quando existem – os textos tornam-se mortiços, sem graça. É verdade que aguentei algumas pregações quase ininteligíveis. Eram peças abruptas de teologia literária, em torrentes metafóricas, pouco adequadas às exigências da oralidade, mas que ressuscitavam com uma força enorme quando saboreadas na leitura. Era, aliás, o estilo de Frei José Augusto Mourão, O. P..
Há missas de ritual perfeito que são também um perfeito aborrecimento. Algumas são salvas pela qualidade da música, outras pela acutilância das homilias. Raras são as celebrações que combinam todos os elementos da encenação simbólica da graça, em consonância com a experiência de vida quotidiana de uma assembleia cristã.
Jorge Bergoglio - não o “Santo Padre”, mas o pecador confesso - é um caso raro. Incarna uma novíssima cultura da graça da pregação tocando a sensibilidade, a mente e o coração das pessoas de diferentes povos, continentes e culturas, segundo inumeráveis testemunhos.
As Ed. Paulinas acabam de publicar, em Portugal, as homilias que ele pregou na Missa matutina da casa Santa Marta [1]. O breve prefácio de Federico Lombardi explica suficientemente o seu percurso até à sua divulgação. As 27 páginas pretensiosas de A. Spadaro são inteiramente dispensáveis.
Receio que a avalanche de livros desta época do ano - até de livros sobre o Papa Francisco – não ajude a reparar no que devia ser considerado como o grande acontecimento cultural do ano. O próprio estilo familiar não atenua, reforça esta convicção. Se os bispos, os padres, os membros dos diversos movimentos cristãos quiserem, dispõem, agora, de um método muito especial para uma nova evangelização da Igreja. Diria que estas homilias são muito mais do que a concretização dos seus grandes textos programáticos, já publicados [2]. Praticam o que estes propõem.
Divulga-se que o Papa desconhece as regras do funcionamento da economia, ignorando que é a própria distribuição desigual da riqueza que se converte no motor do avanço económico e da civilização. O mais urgente, dizem, é desmantelar o Estado Social, erradicar a conversa sobre o amor preferencial pelos pobres e ver o mundo a partir dos que têm sucesso. A mentalidade católica, sobre o enriquecimento, continua a ser a fonte da pobreza dos países do Sul.
2. O que irrita, nos discursos, nas tomadas de posição, nas atitudes e gestos de Bergoglio, é a dificuldade em o classificar sob ponto de vista de um agrupamento ideológico ou partidário e de o arrumar numa corrente espiritual exclusivista. A sua espantosa liberdade é o tecido das Homilias agora publicadas. Não se repetem nem servem para ser repetidas. Valem como inspiração de criatividade na Igreja e na sociedade. Não são feitas para distribuir doses de doutrina sobre a verdadeira fé da Igreja, nem de receitas repetidas sobre a moral católica. Também não são, apenas, um novo estilo com ares de modernidade. São uma nova cultura. Este Papa não é escravo do passado, não fica cego pela última moda, nem remete tudo para o futuro. Pratica o discernimento permanente nestas três dimensões do tempo.
Dedicou uma das homilias a uma das suas convicções fundamentais: sem profecia, cai-se no clericalismo. O profeta é o homem de olhar penetrante que escuta a Palavra de Deus. Nem sempre é bem recebido. O próprio Jesus diz aos fariseus que os seus pais mataram os profetas, porque estes diziam coisas desagradáveis, coisas que os molestavam.
Quando não há profecia, isto é, clarividência, a força recai toda sobre a lei. É a vitória do legalismo. No Evangelho, os sacerdotes foram ter com Jesus para lhe pedirem o registo da legalidade: Com que autoridade fazes tudo isto? Nós somos os donos do Templo. Não tinham olhos penetrantes nem ouvidos para escutar a Palavra de Deus. Só tinham a autoridade. Quando não há profecia no Povo de Deus, o vazio por ela deixado é ocupado pelo clericalismo: é precisamente esse clericalismo que interroga a autoridade de Jesus. Para o clericalismo não há passado nem futuro. Manda o que é legal e que se perpetue.
Reproduzimos a prece do Papa Francisco nesta homilia:
Que a nossa oração, nestes dias em que nos preparamos para o Natal, seja “Senhor, que não faltem profetas ao teu Povo! Todos nós, baptizados, somos profetas. Que não esqueçamos a Tua promessa! Que não nos cansemos de seguir em frente! Que não nos fechemos nas legalidades que fecham as portas! Senhor, liberta o teu povo do espírito de clericalismo e ajuda-o com o espírito de profecia [3].”
Na Turquia, Bergoglio lembrou que todos os dirigentes muçulmanos do mundo, políticos, religiosos e universitários se deviam pronunciar, claramente, contra a violência que afecta o Islão.
[1] A verdade é um encontro, Homilias em Santa Marta, Paulinas, 2014
[2] Francisco, Papa, A Alegria do Evangelho, Difusora Bíblica, 2013; Discurso do Papa Francisco aos participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 27 a 29.10.2014; Discurso ao Concelho de Justiça e Paz sobre o Estado Social, 2.10.2014; Discurso no Parlamento Europeu, 20.11.2014
[3] Cf. Homilias em Santa Marta (pp 428-430)