quinta-feira, 16 de março de 2006

Um artigo de D. António Marcelino

FORMAÇÃO
DO CORAÇÃO Os jornais diários noticiaram-no à saciedade: andam carrinhas com gente da Segurança Social por esse país fora, a fim de ajudar os idosos de oitenta anos e mais a preencher os papéis, que lhes poderão aumentar em vinte e cinco euros mensais, a sua magra pensão social. Ouvi, aqui há umas semanas, remoques partidários sobre a facilidade e a dificuldade dos idosos porem nomes e cruzes em tais papéis. Também pude saber que nas paróquias se estavam disponibilizando voluntários para tal tarefa. Dei-me, por tudo isto, ao trabalho de ler jornais, recheados de episódios, que dedicaram páginas a esta tarefa. Comovi-me. Eu sei que há muitas situações dramáticas e sei o que algumas instituições da Igreja estão fazendo para pagar medicamentos necessários e cada vez mais caros. Mais gente a necessitar deste apoio do que se pode pensar. À volta das senhoras do Estado, vindas de longe, sempre com horas contadas e pouco tempo para ouvir e guardar o que se ouve, muitos idosos abriram a sua alma e a sua vida, como quem se confessa. Uns surdos, outros analfabetos, alguns sem família ou mal amados dos filhos que vivem longe ou que pouco aparecem, baralham os dados, esqueceram o óbvio, não sabem o nome da rua onde moram, nem o país onde estão os filhos emigrantes… “- Quanto recebe de pensão?” “275 euros. Metade vai logo para a renda de casa e para os remédios”. –“Quanto tem no banco?””Cinco mil euros, que venho poupando há muito tempo para o meu funeral.” -“Sendo assim, não tem direito a receber…” Pobres dos pobres! Eu sei que o país está mal de finanças, que tem de haver normas, que há gente que não precisa e recebe, que as senhoras da Segurança Social cumprem ordens e regem-se pelo que vem de Lisboa, que umas delas são frias no trato a todos por igual, e que outras também sofrem com o que ouvem e têm paciência para explicar… O mundo dos pobres, e mais ainda dos idosos marcados pela solidão e por muitas dores, não se trata só com burocracias. Trata-se com amor e com o olhar do coração…Tão poucos são capazes de compreender esta gente, ferida no seu pudor por ter de dizer o que nunca dissera dos filhos menos gratos, penalizada pela preocupação de poupar para o funeral, tirando à boca o pão do dia a dia, regressada, depois disto, à noite das necessidades, sempre maiores, só porque ainda não tem oitenta anos ou porque o seu caso, bem doloroso, não cabe nas normas do ministério… Gente que descontou, numa longa vida de trabalhos e sacrifícios (nem só o dinheiro é desconto para o Estado), para criar um rancho de filhos, muitos deles, gente que hoje enriquece o país com o seu trabalho e poupança, aqui ou além fronteiras. Mesmo quando, por exigência das normas, se lhes negam vinte e cinco euros, os idosos têm direito a um sorriso, a um carinho, ao respeito silencioso de quem fez abrir seu coração com perguntas secas e a contra relógio. Leio na encíclica de Bento XVI “Deus é amor!” que àqueles que servem os mais feridos da vida, são isso mesmo os muitos milhares de idosos sós e roídos por carências e saudades, seja gente das instituições do Estado, seja das particulares, para além da competência profissional, sempre exigida, se lhe deve requerer também a “formação do coração”, nunca dispensada. Vivendo e praticando o amor, afectivo e efectivo, se poderá fazer entrar no mundo dos que sofrem, a luz indispensável de Deus, traduzida em amor humano. Mesmo para preencher papéis a quem não o sabe fazer, não se pode dispensar o olhar do coração.

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