Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Vem-me à memória aquela estória. Diante do avô morto, o menino perguntou à mãe: "E agora?" A mãe: "O avô morreu e a alma foi para Deus e o corpo vai para a terra; quando a mãe morrer, também é assim: o corpo vai para a terra e a alma vai para Deus; quando tu morreres um dia, também é assim: o teu corpo vai para Deus e a tua alma vai para Deus." E o miúdo: "E eu?"
Aí está o enigma maior: o enigma do eu. Nestes tempos líquidos, não se pensa, mas é urgente pensar nesse enigma, mistério mesmo, que é o eu. Eu...
E a esta gigantesca questão está ligada uma outra pergunta decisiva: somos realmente livres? De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.
Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as "escolhas" se repetiam nos mesmos termos ou não.