Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
1. Quando demos por nós, já lá estávamos, claro, mas ainda sem consciência de estarmos. Foi um tomar consciência lento, gradual. Mas houve um dia, dias, em que se nos impôs ou foi impondo claramente que nos pertencemos, que somos livres, que somos donos e senhores de nós próprios e das nossas acções, com a responsabilidade de nos fazermos a nós mesmos no mundo com os outros. De qualquer forma, percebemos que já somos, mas ainda não somos e temos de escolher o que queremos ser. Abateu-se sobre nós, gigantesca, decisiva, a única tarefa que temos: fazendo o que fazemos ou não fazemos, por acção, por omissão, estamos a fazer-nos e, no fim, resultará uma obra de arte ou uma vergonha...
Assim, torna-se claro que a nossa vida, para se erguer num projecto digno, tem de se ir vendo do presente para o futuro e do futuro para o presente continuado, se se quiser, numa imagem mais visual, tem de ver-se de cá para lá e, por antecipação, de lá para cá. Para que lá, no fim, olhando para trás, não nos arrependamos do que fizemos ou não fizemos, não tenhamos vergonha, não tenhamos pena de não termos feito o que poderíamos fazer e não fizemos. É que — isto é abissal — só vivemos uma vez.