Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
1. Quando demos por nós, já lá estávamos, claro, mas ainda sem consciência de estarmos. Foi um tomar consciência lento, gradual. Mas houve um dia, dias, em que se nos impôs ou foi impondo claramente que nos pertencemos, que somos livres, que somos donos e senhores de nós próprios e das nossas acções, com a responsabilidade de nos fazermos a nós mesmos no mundo com os outros. De qualquer forma, percebemos que já somos, mas ainda não somos e temos de escolher o que queremos ser. Abateu-se sobre nós, gigantesca, decisiva, a única tarefa que temos: fazendo o que fazemos ou não fazemos, por acção, por omissão, estamos a fazer-nos e, no fim, resultará uma obra de arte ou uma vergonha...
Assim, torna-se claro que a nossa vida, para se erguer num projecto digno, tem de se ir vendo do presente para o futuro e do futuro para o presente continuado, se se quiser, numa imagem mais visual, tem de ver-se de cá para lá e, por antecipação, de lá para cá. Para que lá, no fim, olhando para trás, não nos arrependamos do que fizemos ou não fizemos, não tenhamos vergonha, não tenhamos pena de não termos feito o que poderíamos fazer e não fizemos. É que — isto é abissal — só vivemos uma vez.
Não se trata de viver apenas em função do futuro, pois é preciso viver intensamente, em todas as dimensões, agora, pois é sempre no presente que vivemos. Mas sem esquecer o futuro. Um dia perguntaram-me qual seria a minha resposta se um jovem me pedisse uma sugestão que o ajudasse a encontrar um sentido para a sua vida. Respondi: “Depende do jovem concreto que me formulasse a pergunta. Mas, de modo genérico, diria: procura responder com dignidade às perguntas e aos desafios que a vida te faz. Mais concretamente: estuda, ama, abre-te generosamente ao mundo e aos outros, alegra-te com o facto de seres jovem e com as possibilidades que te são dadas, não penses exigir colher na vida adulta e na velhice o que não semeaste na juventude.”
2. Evidentemente, não somos totalmente livres. A nossa liberdade é finita, pois estamos enraizados no tempo, em circunstâncias que não dominamos completamente, somos também fruto de uma herança genética, de uma determinada educação, de oportunidades mais favoráveis, menos favoráveis. De qualquer modo, erguemo-nos sempre acima de todas essas circunstâncias e podemos e devemos perguntar: o que é que eu posso e devo fazer com tudo aquilo que me foi dado e com o que a vida fez de mim? Que sentido quero dar à minha existência?
Numa sociedade como a nossa, que põe o acento no prazer, na imagem, no parecer e no aparecer, no consumo voraz, no culto do individualismo, na imediatidade, na sociedade-espectáculo, no “divertir-se até à morte”, a pergunta já não se coloca com a intensidade que exige, e o que então se experiência é o vazio existencial. Se o sentido é da ordem do ser, é natural que numa sociedade baseada no ter, na corrida vertiginosa por isto e por aquilo, haja dificuldade em encontrá-lo. A nossa sociedade vive essencialmente de sensações e da racionalidade instrumental, de meios para outros meios, faltando, por isso, os verdadeiros fins humanos.
A nossa sociedade vive uma tensão. Por um lado, a competição sem freio, o hedonismo, a agitação do imediato, a ruptura com a tradição, a incapacidade de gerir torrentes de informações e a confluência caótica e contraditória de opiniões e cosmovisões, o relativismo dos valores e das crenças conduzem a uma experiência de vazio, que se exprime no sentimento de cansaço, de abandono, de decadência, na proliferação do tédio, da descrença e da agressividade, na anomia do consumo de drogas e de álcool, no aumento crescente das depressões e dos tranquilizantes, na desorientação, uma situação dramática que clama por outra sociedade e uma atitude diferente face à existência. Por outro lado, parece nem haver tempo para parar e perguntar pelo sentido. Evidentemente, a pandemia agravou a situação, mas obrigou a parar e a pensar.
E quem sabe? Numa sociedade da agitação, do ruído, incapaz de silêncio, na voragem do tempo e da vivência à superfície, sem fundura, longe, muito longe da espiritualidade, de Deus e do essencial, pode acontecer que este retiro forçado, obrigando-nos a parar, nos traga a alegria do reencontro com o melhor: a família, o mistério do Ser e de ser, o milagre de existir e estar vivo. Oxalá: um despertar!
E, para verdadeiramente sermos, o apelo ao regresso à ética. Decisivo é perceber que só encontra sentido quem não se encerra em si mesmo, mas se abre ao mundo e aos outros, corresponsabilizando-se pela configuração da sociedade na justiça, na fraternidade e na paz.
Hoje, tomamos consciência mais clara de que a Humanidade habita numa “pequena aldeia” (Mc Luhan) e de que vimos da natureza por evolução e que ou nos salvamos todos ou ninguém se salva. A nossa solidariedade já não pode, portanto, limitar-se aos mais próximos, somos responsáveis pela Humanidade toda no presente e também pelas gerações futuras e, nessa responsabilidade, tem de estar incluída a Natureza. O actual modelo de desenvolvimento gera simultaneamente a crise ecológica e a injustiça social. Assim, a construção da casa comum da Humanidade exige uma consciência ética — veja-se o elo entre ethos (habitação) e oikos (casa), ligando ética, economia e ecologia —, aliada a um nova proposta político-cultural global, para uma nova ordem económico-ecológica global justa e sustentável, a favor do homem todo e da Humanidade inteira.
Anselmo Borges no Diário de Notícias