sábado, 24 de fevereiro de 2024

Livres. Para onde queremos ir?

Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Aparentemente, não há nada que o ser humano tanto preze como a liberdade. Mas, tendo de optar entre a segurança — intelectual, espiritual, social, política, religiosa... — e a liberdade, não se sabe quantos ficariam do lado da liberdade e não da segurança.
Dostoiévski disse-o de modo ácido e também sublime num texto em que também se critica a Igreja de Roma. Fá-lo em Os Irmãos Karamázov, no poema de Ivan com o nome O Grande Inquisidor.
A história passa-se em Espanha, em Sevilha, nos tempos terríveis da Inquisição, precisamente no dia a seguir a um “magnificente auto-de-fé” em que foram queimados de uma assentada, na presença do rei, da corte, dos cardeais e das damas mais encantadoras da corte e da numerosa população de Sevilha, quase uma centena de hereges. Cristo “apareceu, devagarinho, sem querer dar nas vistas e... coisa estranha, toda a gente O reconhece.” Mas o cardeal inquisidor aponta o dedo e manda que os guardas O prendam. E é num calabouço do Santo Ofício que lhe diz que no dia seguinte O queima na fogueira como ao pior dos hereges. E a razão é que a liberdade de fé tinha sido para Cristo a coisa mais preciosa. Não foi Ele que disse tantas vezes: “Quero tornar-vos livres?”
Cristo, afinal, não percebeu que “o Homem não tem preocupação mais torturante do que encontrar alguém em quem possa delegar o mais depressa possível a dádiva da sua liberdade.” “Em vez de Te apoderares da liberdade das pessoas, acrescentaste ainda mais à sua liberdade!”, diz-lhe o inquisidor. “Esqueceste-Te de que a tranquilidade e até a morte são mais queridas para o Homem do que a escolha livre do bem e do mal? Não há nada mais sedutor para o Homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada mais torturante.” Assim, ao longo de quinze séculos, os hierarcas eclesiásticos corrigiram a façanha de Cristo, baseando-a em milagre, mistério e autoridade. Agora, todos sabem em que é que hão-de acreditar e o que é que hão-de fazer, sem terem de perguntar porquê nem de escolher. “E as pessoas ficaram contentes por serem de novo guiadas como um rebanho e por ter sido tirada dos seus corações a dádiva terrível que tanto sofrimento lhes causava.”
Como única resposta o prisioneiro beijou-o, e o velho cardeal vai até à porta, abre-a e diz: “Vai-te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca!”.
O ser humano angustia-se com a liberdade. Porque ser livre quer dizer ser senhor de si e dos seus actos e ter de escolher e ter de responder por si e pelo mundo e pelos outros. Ter de escolher é para o ser humano, que quer tudo e todos os caminhos, ter de escolher algo e um caminho só de cada vez e ter de renunciar a tantas outras possibilidades, sem poder ficar com tudo, na consciência disso. Ser livre quer dizer entrar na urgência de um projecto e poder falhar e, num tempo irreversível, que inexoravelmente caminha para a morte, nunca mais ter tempo para remediar, para refazer, para fazer outra coisa e um ser si mesmo outro: é tudo sempre pela primeira e última vez, sem ensaios...
A angústia da liberdade e da responsabilidade e a busca falaz da segurança explicam a facilidade da entrega a poderes totalitários, a seitas cegas, a colonizadores de corpos e de almas, a vendedores de “verdades e certezas” tapadas e irracionais.
A liberdade é condição de possibilidade da ética. Mas até do ponto de vista da raiz etimológica grega -- ethos com épsilon e ethos com eta, que significam, respectivamente, acção, costume, modo habitual de agir, e toca do animal, morada, casa -- se diz que a questão ética é indissociável da pergunta pela nossa morada enquanto horizonte de sentido, pátria onde se quer habitar. Sim! Afinal, para onde queremos ir? Na presente situação de hecatombe político-moral no país e no mundo, para onde vamos sem uma conversão ética?
Ao contrário do animal, que vem ao mundo já feito e age no quadro de uma rede de instintos, o homem vem ao mundo praticamente desarmado de instintos e aberto a possibilidades sem conta e tendo de fazer-se a si mesmo no mundo com os outros. Pode escolher entre esta e aquela possibilidade, até tem a capacidade de não escolher, mas quem tenta escolher não escolher também escolhe. De qualquer modo, é capaz de erguer-se a si mesmo acima do simplesmente agradável ou útil e colocar-se no lugar do outro. Transcende os interesses particulares da natureza e enquanto ser racional dá a si mesmo de modo autónomo a lei moral universal que é a lei da liberdade. Kant formulou-a nestes termos: “Age segundo uma máxima que queiras ao mesmo tempo que se transforme em lei universal de acção”, ou então: “Trata a humanidade em ti e nos outros sempre como fim e nunca como simples meio.”
Sem capacidade moral e liberdade -- a liberdade é a condição de possibilidade da moralidade e, consequentemente, da responsabilidade --, o Homem não seria digno de louvor nem estaria sujeito à censura, e não haveria distinção entre o bem e o mal. Como escreveu o filósofo Luc Ferry, “um materialismo consequente deveria limitar-se, sempre, a uma ‘etologia’, sem nunca falar de moral a não ser como uma ilusão mais ou menos necessária, fazendo parte do real mas, sem embargo, enganadora”. Embora condicionado, só porque não é completamente subordinado nem guiado pela natureza é que o ser humano “pode cometer excessos, quer no mal (o ódio e a maldade) quer no bem (o amor e a generosidade)”.

Anselmo Borges 

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