Afinal, o que justamente nos indigna noutros também já esteve presente, de uma forma ou outra, entre nós. E será que a tentação não continua lá?
Vamos dar exemplos.
Não foi há 1000 anos - muitos de nós ainda se lembram perfeitamente disso - que as mulheres só podiam entrar nas igrejas com o véu e que a missa era em latim, e as pessoas ali estavam durante uma hora ou mais a ouvir e a dizer o que exprimimos no dito: “Para mim, é chinês.”
Tudo indica que, enquanto pôde, o clero controlou a vida sexual dos fiéis, a ponto de o historiador Guy Bechtel afirmar que a fractura entre a Igreja Católica e o mundo moderno se deu essencialmente na teoria do sexo e do amor: “Onde Estaline se detinha à porta da alcova, a Igreja pretendia deslizar para o meio dos lençóis”, pois o diabo estava também, e sobretudo, dentro da cama. A confissão inquisitorial centrada na actividade sexual terá sido causa determinante na descristianização da Europa. Neste sentido, o historiador católico Jean Delumeau afirmou: “As minhas investigações históricas convenceram-me de que a imagem do Deus castigador e vingativo foi um factor decisivo de uma descristianização cujas raízes são antigas e poderosas.” Os homens e as mulheres começaram a abandonar a Igreja, quando recusaram a confissão do seu território sexual, isto é, quando contestaram a invasão do segredo da intimidade, considerado um direito inalienável. Ah! E o carácter hediondo da pedofilia!...
Não é preciso lembrar os homens e as mulheres que foram assados nas fogueiras da Inquisição e não só: porque tinham ideias novas que não estavam de acordo com o que os guardiões da fé tinham estabelecido como a verdade, ou por causa do medo-pânico da mulher, que se chegou a acusar de manter relações sexuais com o diabo...
Houve os autos-de-fé, e também os livros considerados heréticos foram queimados.
No passivo do cristianismo histórico, estão as cruzadas, as guerras de religião, as conquistas coloniais, a missionação forçada. Já Kant se referiu aos Descobrimentos nestes termos: “A América, os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc., eram para eles, na sua descoberta, países que não pertenciam a ninguém, pois os habitantes nada contavam para eles.” Este “eles” refere-se às “potências que querem fazer muitas coisas por piedade e pretendem considerar-se como eleitas dentro da ortodoxia, enquanto bebem a injustiça como água”.
Assim reza a Bula Romanus Pontifex (1454) para os reis de Portugal: “Nós concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados, principados, domínios, possessões e bens móveis e imóveis tidos e possuídos por eles; e reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos, e destinar para si e os seus sucessores e apropriar-se e aplicar para uso e utilidade sua e dos seus sucessores os reinos, ducados, condados, principados, domínios, possessões e bens deles...”
Há também a Bula Inter Caetera de Alexandre VI (1493) concedendo os mesmos direitos aos reis de Castela, mas com uma diferença, como sublinha o historiador teólogo Mariano Delgado: não autoriza explicitamente a escravizar os pagãos (índios), pois, insistindo no mandato da evangelização, exclui implicitamente a escravização, porque os baptizados não podiam ser escravizados.
Hoje é sabido que 20 milhões de africanos foram escravizados.
Há uma Constituição do Papa Clemente XI, que proíbe a leitura da Bíblia, incluindo os Evangelhos, aos leigos, e especialmente às mulheres.
Pio VI condenou a “detestável filosofia dos direitos do Homem”. Pio XI condenou a evolução.
No termo do século XX, o teólogo Eugen Drewermann escreveu: “Há 500 anos a Igreja recusou a Reforma; há 200, o Iluminismo; há 100, as ciências naturais; há 50, a psicanálise.
Como viver com tantas rejeições?”. E o cardeal Carlo Martini, que o Papa Francisco cita, constatava que “a Igreja anda atrasada mais de 200 anos”.
Apesar de tudo, julgo poder afirmar que no cômputo global o saldo é superior a favor da religião, nomeadamente do cristianismo. Esta evocação histórica não é, portanto, de modo nenhum um exercício de masoquismo. Quer apenas mostrar que se tornou absolutamente claro que não só não é humano, mas tremendamente perigoso, aderir de modo cego a uma religião. A fé não é produto da razão, mas a fé autêntica exige a intervenção da razão crítica. Foi esta intervenção que levou, por exemplo, à compreensão de que os livros sagrados - a Bíblia, o Alcorão ou outros - não são ditados divinos; por isso, precisam de interpretação, de uma hermenêutica histórica, não podendo ser engolidos na sua totalidade de modo acrítico. Tornou-se sobretudo transparente que uma religião que seja contra o ser humano, o diminua ou amesquinhe, das duas uma: ou é uma religião falsa ou interpreta-se mal a si própria.
Não me canso de sublinhar que o Novo Testamento “define” Deus como “Amor Incondicional” (Agapê) e também como Lógos (Palavra, Inteligência, Razão) e, por isso, uma vida autenticamente humana e cristã se realiza no cruzamento do amor e da inteligência, da bondade e da razão. E peço aos críticos e inimigos de Francisco, o Papa-cristão que procura levar a Igreja ao Evangelho e trazer o Evangelho à Igreja, que não se esqueçam das desgraças da História.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.