domingo, 7 de maio de 2023

Tudo por causa da alegria

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

O cristianismo não é propriamente conhecido por ser a religião da alegria e é uma pena. Como escreveu Nietzsche, o cristianismo seria muito mais credível se os cristãos vivessem em alegria.

1. Faz parte da diferença humana a capacidade de perguntar, de investigar, de receber e criar as mais diversas formas de expressão cultural alimentadas pelo sentido do humor. Da consciência da nossa infinita ignorância brota a sabedoria do sorriso perante as vazias promoções do carreirismo, seja em que domínio for. A realidade será sempre mais vasta do que todas as nossas ciências, filosofias e religiões.
É verdade que também faz parte da diferença humana a possibilidade de desenvolver cada vez mais ciências, técnicas e ideologias que destroem as suas melhores criações. Verificamos, a toda a hora, que a chamada globalização não é garantia da universal solidariedade entre os povos. Mas é possível.
O papa Francisco, durante os seus dez anos de pontificado, não desistiu nem desiste de associar pessoas, movimentos cívicos, políticos e religiosos, para fazer deste mundo a casa de todos e para todos.
Continuamos a perguntar: com tantas capacidades para reduzir os males no mundo e aumentar as condições do gosto de viver, porque regressamos à guerra, uma das mais velhas formas de estupidez?
Em vez de investir em universalizar os meios de uma vida mais feliz para todos, aumentamos e sofisticamos os meios de fazer mal, de destruir, de provocar milhões de deslocados, de refugiados e a quem se nega um lugar neste mundo.
Por essa razão, Bergoglio acaba de ir à Hungria, um país de maioria católica e protestante para lembrar o essencial. A esta grande maioria falta-lhe praticar um humanismo inspirado no Evangelho e enraizado em duas pistas fundamentais: reconhecer-se como filhos amados do Pai e amar cada um como irmão.
Perante tantos desesperados que fogem dos conflitos, da pobreza e das alterações climáticas, é urgente que nós, enquanto Europa, trabalhemos em vias seguras e legais, em mecanismos partilhados face a um desafio que não pode ser travado pela rejeição, mas que deve ser abraçado para preparar um futuro que, se não for em conjunto, não será.
Neste tempo pascal, confrontamo-nos de forma mais viva com as contradições que podem acompanhar as próprias celebrações litúrgicas, com os seus textos, gestos e músicas admiráveis, nas diversas dimensões da vida cristã: vida pessoal, familiar, profissional, cívica, política e económica. Diante destas e outras incongruências, foi-se criando um ambiente, ora de indiferença ora de abandono efectivo da prática religiosa. Não são a única alternativa.
Para que seja realizado o enlace dessas diversas dimensões, a melhor alternativa é a nossa conversão nunca acabada. Só com esse enlace é possível saborear o movimento suscitado por Jesus de Nazaré, para que todos tenham vida e vida em abundância.
Não estou a inventar. A Primeira Carta de S. João começa desta maneira: O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram a Palavra da Vida, porque a Vida manifestou-se: nós vimos e damos testemunho e vos anunciamos esta Vida eterna que estava com o Pai e que se manifestou a nós.
O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos, para que estejais também em comunhão connosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemos isto para que a nossa alegria seja completa.
O evangelista João também não inventou nada. Foi da boca de Cristo que ouviu esta declaração solene: Digo-vos isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena e ninguém vo-la possa tirar [1].

2. Isto foi dito há dois mil anos. Não é evidente na nossa sociedade e talvez nunca tenha sido evidente, mas é para nós, e para sempre, que foi dito. Essa alegria é preciso procurá-la no mundo da nossa experiência. O mundo na sua complexidade – não a fuga do mundo – será sempre o nosso verdadeiro lugar teológico. A mística da fuga do mundo desenvolve-se numa falsa teologia.
Como é sabido, na Bíblia, a palavra mundo tem vários significados. Uma das narrativas poéticas da criação termina com a exclamação: Deus viu que tudo era muito bom! No entanto, o ser humano pode usar a sua liberdade para fazer o pior, tornar este mundo inabitável, mas também o pode transformar num novo jardim. É esse o sentido incarnacionista da esperança cristã. Deus não fez só a dança da criação. Tornou-se nosso aliado, um de nós, para relançar a tarefa nunca acabada da nossa conversão.
Como diz Auden, poeta católico, “eu não sei nada que cada um de vós já não saiba. Se estivermos lá, onde a Graça de Deus dança, também nós dançaremos”. Tolentino de Mendonça lembra a ronda maravilhosa dos eleitos que Frei Angélico pintou no meio de anjos músicos todos de mãos dadas. É uma imagem muito mais próxima da tradição bíblica do que se poderia imaginar, como canta o Salmo 33: Alegrai-vos no Senhor, louvai o Senhor com cítaras e poemas, com a harpa das dez cordas louvai o Senhor; cantai-lhe um cântico novo, tocai e dançai com arte por entre aclamações [2].

3. O cristianismo não é propriamente conhecido por ser a religião da alegria e é uma pena. Como escreveu Nietzsche, o cristianismo seria muito mais credível se os cristãos vivessem em alegria.
É preciso não perder a leitura do texto do Evangelho deste domingo. É uma narrativa de despedida. Jesus notou que os seus discípulos estavam perturbados com o pressentimento de uma triste separação. Jesus apressa-se a apaziguá-los com expressões altamente teológicas e enigmáticas.
Quem escreveu o texto captou bem o humor no diálogo de despedida entre o mestre e os discípulos. Não se perturbe o vosso coração. Para onde eu vou, conheceis o caminho.
Reacção de Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos conhecer o caminho? Jesus respondeu-lhe: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim. Se me conheceis, também conhecereis o meu Pai. Desde agora o conheceis e o vistes.
Esta resposta só aumentou a confusão dos discípulos que Filipe tenta resolver de forma prática: mostra-nos o Pai e isso nos basta!
Jesus suspira fundo: há tanto tempo que estou convosco e tu não me conheceste, Filipe? Quem me vê vê o Pai. Como podes dizer, mostra-nos o Pai? Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em mim, realiza as suas obras. Acreditai, ao menos, por causa destas obras. Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim fará as obras que eu realizo e fará até maiores, porque vou para o Pai [3].
Este diálogo, situado no passado, não é só do passado que fala. É um texto sobre o futuro da Igreja, sobre o futuro das suas tarefas de evangelização, em cada época, segundo o ritmo dos problemas que vão surgindo. Houve épocas muito criativas e outras que sufocaram a criatividade. Interessava mais assegurar a permanência do passado do que o carisma da inovação.
Tudo no cristianismo é por causa da alegria. Sempre ameaçada. Não podemos, no entanto, desistir deste caminho de Deus, caminho de irmãos.

Frei Bento Domingues no  PÚBLICO

[1] Cf.Jo 15, 11; 16, 2
[2] Cf. Tolentino Mendonça, Testemunhar o Bom Humor de Deus, in Encontros do Lumiar
[3] Cf. Jo 14, 1-12

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue