sábado, 24 de dezembro de 2022

Litania para o Natal de 1967

 

Para nos pedir contas do nosso tempo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo

David Mourão-Ferreira  


NOTA: Enquanto por ali andava encolhido a tentar fugir do frio, saltou-me da memória este lindo poema (para mim, claro) de  David Mourão-Ferreira, que partilho com os meus amigos amantes da poesia, com votos de Bom Natal.

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