no Diário de Notícias
"O Natal do comércio chega de um dia para o outro. Fácil, tilintante, confuso, pré-fabricado. É um Natal visual. Um amontoado de símbolos. Dentro de nós, porém, sabemos que não é assim. Para ser verdade, o Natal não pode ser só isto. Não pode ser apenas para uma emoção social, para um corrupio de compensações, compras e trocas. Para ser verdade, o Natal tem de ser fundo, pessoal, despojado, interpelador, silencioso, solidário, espiritual. Acorda em nós, Senhor, o desejo de um Natal autêntico."
José Tolentino Mendonça
A festa do Natal tem de ser, é, mais do que o festival do comércio natalício. Há pessoas que chegam à noite de Natal cansadas e desfeitas, por causa dos presentes. No último instante, ainda tiveram de ir à última loja aberta, por causa de mais uma compra. Há inclusivamente pessoas para as quais o tormento das compras natalícias começa logo em janeiro, uns dias após o Natal: o que é que vão dar como presente àquele, àquela, no Natal seguinte?!...
A festa do Natal é infinitamente mais, e deve sê-lo. Porque o Natal é uma visita de Deus aos homens, às mulheres, aos jovens, às crianças. É Deus presente entre nós. E, ao contrário do que frequentemente fazemos com os nossos presentes, que pretendem ser uma manifestação de ostentação de poder junto dos outros, Deus veio, sem majestade, sem poder. Veio, humilde, na ternura de uma criança. De tal maneira que os mais pobres - os pastores - não se sentiram humilhados ao visitá-lo. Foram os pastores os primeiros que viram Deus visível num rosto de criança. Quem é que imaginaria que Deus, se algum dia viesse, viria assim: simples, pobre, precisamente para que ninguém se sentisse excluído?...
Quer se seja cristão quer não, quer se acredite quer não, é necessário reconhecer que foi através do cristianismo, isto é, mediante a fé no Deus feito Homem, que veio ao mundo a tomada de consciência explícita e clara da dignidade infinita do ser humano. Isso foi reconhecido por pensadores da estatura de Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas. Hegel afirmou expressamente que na religião cristã está o princípio de que "o Homem tem valor absolutamente infinito". Ernst Bloch, embora ateu, confessou que foi pelo cristianismo que veio ao mundo a consciência do valor infinito da pessoa humana, de tal modo que nenhum homem, mulher, jovem, criança, pode ser tratado como "gado". Jürgen Habermas, o mais importante filósofo vivo, escreveu que a democracia não se entende sem a compreensão judaico-cristã da igualdade radical de todos os homens, por causa da "igualdade de cada indivíduo perante Deus": o princípio de "um homem um voto" é a tradução política da fé cristã de que cada homem, cada mulher, é filho, filha, de Deus, valendo todos como iguais. A própria ideia de pessoa enquanto dignidade inviolável e sujeito de direitos inalienáveis veio ao mundo através dos debates à volta da tentativa de compreender a pessoa de Cristo e o mistério do Deus trinitário cristão. Embora, desgraçadamente, tenham tido de impor-se contra a Igreja oficial, foi em solo de base cristã que foram germinando e se deram as grandes Declarações de Direitos Humanos.
Afinal, é uma alegria enorme dar um presente e receber um presente, concretamente na época de Natal. Mas essa alegria não provém tanto do valor material do presente como desse saber que consiste em sermos e estarmos nós próprios presentes uns aos outros: ele lembrou-se de mim, eu lembrei-me dele; eu lembrei-me dela, ela lembrou-se de mim...
O pequeno presente oferecido é sinal, símbolo, dessa presença calorosa, e exprime a alegria de se ser pessoa, cuja dignidade infinita reconhecemos em cada ser humano. Assim, celebrar o Natal tem de ser também contribuir para que se concretize o anúncio dos anjos aos pastores, que constituíam a classe baixa dos pequenos e pobres e que inclusivamente viviam à margem da prática religiosa: "Nasceu para vós um salvador; Paz na Terra aos homens amados por Deus." É uma vergonha para a Humanidade que hoje mais de 800 milhões de pessoas passem fome enquanto os gastos com armamento não cessam de aumentar.
José Tolentino de Mendonça escreveu: "O Natal do comércio chega de um dia para o outro. Fácil, tilintante, confuso, pré-fabricado. É um Natal visual. Um amontoado de símbolos. Dentro de nós, porém, sabemos que não é assim. Para ser verdade, o Natal não pode ser só isto. Não pode ser apenas para uma emoção social, para um corrupio de compensações, compras e trocas. Para ser verdade, o Natal tem de ser fundo, pessoal, despojado, interpelador, silencioso, solidário, espiritual. Acorda em nós, Senhor, o desejo de um Natal autêntico."
Considero suicidário que os europeus menosprezem a sua herança cristã. Sinto como desastroso e ridículo, que, em nome da inclusão, uma vez que nem todas as religiões celebram a data, a comissária europeia para a Igualdade, Helena Dalli, tenha recomendado a abolição da palavra "Natal", a substituir por "período de festas", por exemplo. No guia distribuído aos funcionários da Comissão Europeia, chegou-se ao cúmulo de recomendar a substituição de nomes cristãos, como Maria e José... por outros. Pergunto: será que alguém que não estima a sua cultura vai respeitar as dos outros? O ser humano, na e para a sua identidade, é ao mesmo tempo enraizado e aberto. Quem nega as suas raízes, perdendo a identidade, tem competências para se abrir ao diálogo são e enriquecedor com os outros? Significativamente, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, escreveu pessoalmente ao Papa Francisco assegurando que a União Europeia se inspira na "herança cultural, religiosa e humanista da Europa".
Seja como for, é Karl Rahner, talvez o maior teólogo do século XX - tive o privilégio de ser seu aluno -, que tem razão: "Quando dizemos "é Natal", estamos a dizer: Deus disse ao mundo a sua última palavra, a sua mais profunda e bela palavra numa Palavra feita carne. E esta Palavra significa: amo-vos, a ti, mundo, a vós, seres humanos." Natal bom e feliz!
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia