segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Ajudar o Advento da Alegria

Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO

Não podemos baixar os braços. Igrejas que entrem num verdadeiro processo de conversão ajudam o Advento da Alegria. Preparam o Natal.

1. Há exortações e exortações. Algumas parecem tão exageradas que exprimem mais o desejo de quem as faz do que a possibilidade de poderem ser levadas a sério pelos seus destinatários. A Missa deste Domingo começa com um imperativo impossível: alegrai-vos sempre! Parece uma exortação inútil, como se alguém estivesse triste porque queria. Aliás, o mesmo S. Paulo também faz outra exortação ainda mais inútil: alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram[1]. No entanto, a exortação que deu o nome ao 3.º Domingo do Advento, ao alegrai-vos sempre, acrescenta: no Senhor, isto é, no Ressuscitado, alma do Domingo para se tornar alma de toda a semana. É este o próprio fundamento do movimento cristão, com modalidades diferentes, segundo os tempos e lugares.
Quem faz uma exortação não espera colocar as pessoas fora da história que é sempre uma mistura de bem e mal, de alegria e tristeza, de sofrimento e alívio. Com os seus escritos, S. Paulo não faz exercícios de psicologia voluntarista. Ele parte de convicções cristãs alicerçadas no Espírito que o move e recorda, aos seus destinatários, que são habitados não por um espírito de derrota, mas pelo Espírito que, em todas as situações, nos lembra não apenas que o mundo geme em dores de parto, mas que não estamos órfãos, irremediavelmente perdidos. No meio das maiores tragédias, é esse Espírito que nos lembra que Deus não é sim e não. É um sim de um amor indestrutível e, por isso, nos permite clamar Abba Pai[2].
Com isto não digo que Paulo pretende substituir as ciências humanas por exortações teológicas. Pelo contrário, estas são uma convocatória de todas as capacidades humanas e de algo que as excede.
Muitas vezes, se acusou o Cristianismo de ser uma glorificação do sofrimento, do sacrifício e de adiar a alegria e a felicidade para o céu. Seria com o sofrimento neste mundo que se ganharia o direito à felicidade eterna. Quando se faz da cruz o símbolo do Cristianismo, esquece-se, muitas vezes, o essencial. Jesus nunca quis a cruz, nunca desejou o sofrimento. Pelo contrário, passou a vida a “descrucificar” as pessoas que eram vítimas de doença, de descriminação, de desprezo, de todas as formas de sofrimento e de marginalização. S. João poderá dizer que Jesus veio para que todos tenham vida e vida em abundância[3]. Se perdeu a vida foi por nunca abdicar desta sua missão libertadora, a verdadeira vontade de Deus, vontade de um Deus mal servido por muitas expressões sacrificiais da religião do Antigo Testamento. Quando se diz que Jesus aceitou a morte para cumprir a vontade de Deus, é o supremo insulto a Jesus Cristo e ao seu Deus. Essa expressão deve ser classificada como blasfémia. A vontade criadora e recriadora de Deus é de nunca se desistir da alegria. É por isso que a cruz só pode ser símbolo do Cristianismo mediante a Ressurreição, o triunfo sobre a cruz, sobre a morte. A primeira e última palavras pertencem à alegria.

2. Quando, na conjuntura actual, muitas vozes decretam a irremediável derrota da Igreja, importa saber de que igreja se está a falar. A mim, apetece-me dizer: alegremo-nos! E porquê? Acabou o falso triunfalismo das falsas expressões da Igreja.
Quando Bergoglio aceitou ser o Papa Francisco (de Assis), foi depois da renúncia de Bento XVI que se sentiu incapaz de enfrentar as reformas que se impunham. À medida que foi descobrindo a situação real do Vaticano, não caiu em depressão, como seria normal. Tomou consciência das urgentes tarefas cristãs que tinha de realizar. A referência fundamental não eram as suas capacidades nem os seus desejos. Não estava centrado no seu ego nem na vontade de poder. Estava centrado na Alegria do Evangelho, como mostrou no manifesto do seu pontificado: Evangelii Gaudium. Foi há oito anos e não aconteceu o que, muitas vezes, ocorre num governo que começa com muita generosidade e que, ao longo do tempo, vai esquecendo os seus compromissos. Quem ler o citado manifesto verifica uma fidelidade espantosa. Excede sempre o prometido.
Parece-me que, neste momento, está a atingir um ponto decisivo sem retorno possível ao passado, salvo ao passado das próprias fontes cristãs, nas quais, bebe um renovado impulso do Espírito. Quero dizer porquê.
A reforma da Igreja, uma Igreja outra, ao serviço de um mundo outro, não será obra de um Papa iluminado nem do sínodo de todos os bispos católicos. Tem de ser obra de toda a Igreja, conduzida pelo Espírito de Cristo, com a participação de todos os baptizados, de todos os que assumem a sua cidadania cristã. Exige a escuta da sociedade, a escuta das outras Igrejas cristãs, das outras religiões e dos sem religião, mas que desejam que a Casa Comum seja mesmo comum e que não se contentam com o mundo que temos de desigualdades abissais. Esta movimentação está em curso, mediante o Sínodo de toda a Igreja e que reclama uma participação activa, um passar a palavra, alargando a informação acerca das experiências múltiplas que estão a ser vividas, de uma forma ainda muito insipiente.

3. O Papa Francisco, ao lançar esse movimento, não foi para férias. Intensificou o que tem sido o percurso de oito anos de uma pessoa que já não é uma criança nem tem saúde de ferro.
Da sua peregrinação mais recente, a Chipre e à Grécia, já é possível documentar-se acerca de tudo o que aconteceu. Basta seguir o site do Vaticano. Não conhecemos ainda os frutos desse esforço, mas a forma como continuou a associar as relações entre ortodoxos e católicos revela, para lá das diferenças, uma grande comunhão inter-eclesial e um esforço conjunto para encarar as questões humanitárias e políticas, segundo as exigências do Evangelho. Foi um advento de alegria para o qual todos contribuíram, todos ajudaram e, sobretudo, a forma sincera como pediu perdão.
Na viagem de regresso a Roma, ao responder aos jornalistas, insistiu nos perigos dos populismos e das ameaças à democracia que se nota em muitos lugares. Quis também pedir perdão “por todas as divisões que existem entre os cristãos, mas sobretudo por aquelas que provocamos nós, católicos”. Por último pediu perdão “(este veio-me do coração!) pelo escândalo do drama dos migrantes, pelo escândalo de tantas vidas afogadas no mar”.
Esta foi a peregrinação apostólica mais recente, mas revelou que, por ele, está pronto a ir a Moscovo ou, para se encontrar com o Patriarca Kirill, seja onde for. “Para conversar com um irmão, não há protocolos. Irmão é irmão, antes de todos os protocolos. E eu com o irmão ortodoxo – seja Kirill, Crysostomos ou Ieronymos, é sempre um irmão – somos irmãos e dizemos as coisas cara a cara. Mas como irmãos! É bom ver os irmãos discutir: é óptimo, porque pertencem à mesma Mãe, a Mãe Igreja, mas estão um pouco divididos, uns pela herança, outros pela história que os dividiu... Mas devemos andar juntos e procurar trabalhar e caminhar na unidade e pela unidade”.
Não podemos baixar os braços. Igrejas que entrem num verdadeiro processo de conversão ajudam o Advento da Alegria. Preparam o Natal.

Frei  Bento Domingues

[1] Rm 12, 15
[2] Rm 8
[3] Jo 10, 10

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