4 Continuando a reflexão sobre a interligação de tudo e de todos, perguntamos: e para onde vamos? Sobretudo: para onde queremos ir? Que futuro?
Face ao futuro, é essencial pensar. E voltamos à escola, que vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a pólis (daí vem política): a Cidade, isto é, a Casa comum da Humanidade. Hoje o que mais falta é precisamente este ócio. Ora, sem ele, tudo se torna negócio (do latim nec-otium). A própria política tornou-se sobretudo negócio(s). Assim, sob o império da técnica e do(s) negócio(s), não se pensa, calcula-se: o filósofo M. Heidegger chamou a atenção para isso: a técnica não pensa, calcula, o mesmo valendo para os negócios.
5 Olhando para o futuro, o que nos vincula é a esperança. Mas, mais uma vez, não há esperança autêntica sem pensamento. Quando olhamos para o futuro, encontramos evidentemente, motivos para imensa satisfação - voltando à pandemia, não temos de agradecer à ciência, pois, para dar um exemplo, nunca se tinha conseguido tão rapidamente uma vacina, e foi por causa das novas tecnologias que pudemos continuar, apesar de tudo, com mais ligação nos diversos níveis e facetas da vida? -, mas é preciso tomar consciência também das ameaças e dos perigos, que são gigantescos e globais. Há problemas de tremenda complexidade, já presentes e que se agravarão. Apenas exemplos: a guerra nuclear; a ecologia e as alterações climáticas; guerras digitais; as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências) na sua ambiguidade, pois há novas possibilidades mas também perigos: frente às possibilidades do transumanismo e do pós-humanismo, é preciso reflectir sobre o que verdadeiramente queremos; úteros artificiais e seus problemas; bebés transgénicos, experiências com híbridos; questões relacionadas com o inverno da natalidade, nomeadamente na Europa (em Portugal, será uma catástrofe), os mercados globais, a injustiça estrutural global, as migrações forçadas e anárquicas, as lutas tecnoeconómico-políticas pela supremacia global, o trabalho, as drogas, a paz, os direitos humanos... Vivemos num mundo global, estes problemas são globais e a questão é que a política é nacional, quando muito regional, com Governos que governam a curto prazo para ganhar eleições, mas estes problemas são globais e exigem uma solução a longo prazo... Não precisamos, portanto, de erguer uma Governança global Não digo Governo mundial, mas Governança global, já que os problemas enunciados só com decisões ético-jurídico-políticas globais poderão encontrar solução.
Neste contexto, é necessário contar com o apoio da Igreja. A Igreja Católica é a única instituição verdadeiramente mundial, presente em todo o mundo e em todos os estratos sociais. Com a renovação em curso, segundo o Evangelho de Jesus, que implica também uma reforma radical da Cúria, e com uma orgânica nova de governo, a sinodal, pode-se e deve-se pensar e contar com o seu contributo decisivo enquanto voz político-moral tanto localmente como ao nível regional e global. Evidentemente, por si mesma e também em ligação com as outras Igrejas cristãs e com as diferentes religiões mundiais, com as quais continuará a empenhar-se num diálogo vivo e lúcido, segundo as exigências que o diálogo autêntico exige e que não pode ser unidireccional.
E qual é o Sentido último de todos e de tudo? Problema maior hoje: há hoje uma espécie de cansaço vital. Porque não há Sentido último. Daí, nem é no desespero que se vive, mas na inesperança. Só com Deus enquanto o "Futuro Absoluto", na expressão célebre do teólogo Karl Ranher, talvez o maior teólogo católico do século XX, se pode erguer um futuro autenticamente humano, com Sentido final, pois Deus é o Futuro de todos os passados, o Futuro de todos os presentes, o Futuro de todos os futuros.
6 No fim, voltamos ao princípio, por outras palavras, é imprescindível voltar a cada um, a cada uma, começar por si próprio, por si própria. E aí está a relação de cada um, de cada uma consigo mesmo, consigo mesma. A Humanidade é constituída por pessoas, em ligação com tudo e com todos, mas únicas.
Cada um precisa de ter uma relação boa consigo, portanto, com o seu passado. Afinal, o presente já foi, no passado, um sonho de futuro(s): é sempre no presente que vivemos, mas relacionados com o passado. Olhando para o passado, talvez não fiquemos satisfeitos, pois houve erros, disparates, sei lá!, e então é preciso é reconciliar-se com ele para que não continue a envenenar-nos - nisto, o crente sabe que deve contar com Deus: Ele entende e perdoa. No presente, é preciso pensar no futuro, já que o presente é inevitavelmente voltado para as possibilidades futuras: que futuro projectamos, que queremos para o futuro, sabendo concretamente que, pensando nele, inevitavelmente deparamos com a morte? Colocando-me na perspectiva do fim - também a história individual só a partir do fim se pode ler toda -, que quero, no fim, ter feito de mim, em ligação com os outros? De tal modo que possa esperar, sem ilusões, que a morte não tem a última palavra. Como disse I. Kant de forma lapidar: "A práxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além."
PS: Uma arreliadora gralha no texto da semana passada fez aparecer o Big Bang há 3700 milhões de anos em vez de há 13 700 milhões de anos. Peço desculpa.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia