no Diário de Notícias
1. Pergunta-se: o que se passou para que o jesuíta Victor Codina tenha podido escrever, num estudo sobre Ser Cristiano en Europa?, que estamos a assistir a um colapso do cristianismo na Europa?
Realmente, os dados são preocupantes. Exemplos: na Espanha, o número de agnósticos e ateus supera o dos católicos praticantes. Na França, a maior parte da população já não é católica. Na República Checa, mais de 60% declaram-se ateus. Nos Países Baixos, na Noruega, na Suécia..., o número dos que se declaram sem religião ronda os 50% da população. E tudo indica que o número de católicos e dos que se confessam cristãos vá diminuindo na Europa em geral e é, de facto, notória a exculturação do cristianismo... Quanto à juventude, os números são alarmantes: “uma grande parte vive à margem da Igreja, que, para ela, se converteu numa pequena e estranha seita”. A situação reflecte-se na queda vertiginosa das vocações, com seminários vazios, muitas paróquias — o seu número aumentará sempre — não têm padre. E não é só “um inverno eclesial europeu”, assistimos também a um exílio de Deus...
Procurando causas. Quanto à Igreja-instituição, temos o impacto brutal dos escândalos clamorosos da pedofilia, bem como dos escândalos económico-financeiros e da corrupção no Vaticano. E, quando olhamos para as estruturas eclesiásticas, é inevitável a pergunta: onde está a simplicidade e a fraternidade exigidas pelo estilo do Evangelho? Acrescente-se o patriarcalismo, a exclusão das mulheres, o clericalismo, que é uma verdadeira “peste da Igreja”, como repete o Papa Francisco, implicando uma “estrutura perversa”, segundo G. Schickendanz. Há “um desfasamento teológico e cultural da doutrina e dos dogmas”, cujas formulações se devem à cultura helénica, longe da mentalidade moderna e pós-moderna. Acrescente-se “uma moral legalista e casuística, proveniente de uma antropologia dualista, pré-moderna, pouco personalista, muito centrada no sexo, que utiliza a pastoral do pecado e do medo do castigo para manter o povo cativo da Igreja.” Uma liturgia hierática, ritualista, ininteligível para a maioria dos fiéis, pouco ou nada participada. Para muitos, o cristianismo e a Igreja constituem “um déjà vu”, algo ultrapassado e em desuso; pior: para alguns, a Igreja é a personificação do pior da nossa cultura: “repressão, ânsia de poder, inquisição, censura, machismo, moralismo, ódio à vida, sentido de culpa e de pecado”
Mais preocupante é que Deus se tornou longínquo, um estranho, “um Deus no exílio”, na expressão de L. Duch. No mundo da tecnociência, do consumo, do conforto, do hedonismo, do ter, do parecer e do aparecer, à volta de um “eu” desvinculado de toda a norma, entrou-se num imanentismo fechado, mais a-religioso do que anti-religioso, mas sem horizontes de transcendência: não interessa “o que vai para lá da vida quotidiana, do trabalho, do dinheiro, da comida, da saúde, do consumo, do sexo, do bem-estar e da segurança de uma velhice tranquila”. A vida é para gozar no sentido mais imediato do termo, na busca de uma juventude perene...
A pergunta é: E quando toda esta lógica é barrada, posta em causa? Isso constata-se agora, no meio desta catástrofe trágica da pandemia. De repente, um vírus invisível que invadiu o mundo todo, apoderando-se da Humanidade, veio travar e pôr em causa estes ideais. O mal-estar é deprimente, e a esperança está em que, depois de um interregno, a que uma vacina ponha termo, se volte à “normalidade”, isto é, ao ponto onde fomos apanhados, para podermos avançar outra vez na lógica na qual se vivia. Ainda se não pensou profundamente sobre a impossibilidade deste raciocínio e seus pressupostos. De facto, já não se pode ignorar que o modelo anterior está posto radicalmente em causa. Porque é preciso entender que não é possível continuar o modelo tecnocrático de desenvolvimento ilimitado, que somos globalmente interdependentes, que o progresso tem de ter em conta as alterações climáticas, a biodiversidade, e avançar, portanto, segundo um modelo coerente com a urgência de “uma ecologia integral”, para utilizar a expressão feliz do Papa Francisco: o grito da Terra e o grito dos pobres, clamando por uma humanidade justa.
2. Mas também pode acontecer que as pessoas, confrontadas com o abismo da existência, com a morte, parem e reflictam, indo ao encontro do essencial, das perguntas últimas, do Mistério vivo e acolhedor. Vêm-me à memória palavras luminosas do grande Václav Havel, que constatou: “Estamos a viver na primeira civilização global”. Acrescentou: “Mas também vivemos na primeira civilizaçãoa ateia, isto é, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade.” As consequências disso: uma civilização obstinada em perseguir objectivos a curto prazo”, “o que é importante é que um investimento seja rentável em 10 ou 15 anos” e não os efeitos dentro de 100 anos. Depois, “o orgulho”, a hybris dos gregos. Por isso, suspeitava que “a nossa civilização caminha para a catástrofe”, a não ser que cure “a sua miopia e a sua estúpida convicção de omnisciência, o seu desmesurado orgulho”. Achava que “o desenvolvimento desenfreado de uma civilização deliberadamente ateia deve alarmar-nos”. Considerava-se apenas meio crente, mas com “a certeza de que no mundo não é tudo apenas efeito do acaso” e convencido de que “há um ser, uma força velada por um manto de mistério. E é o mistério que me fascina”. “A transcendência é a única alternativa à extinção.”