sábado, 22 de agosto de 2020

BENTO XVI. UMA VIDA. 3

Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias


Ratzinger no Vat. II

No dia 11 de Outubro de 1962, foi a inauguração solene do Concílio Vaticano II, o maior acontecimento em número de participantes na História da Igreja e de consequências mais significativas também — o general De Gaulle considerou-o o maior acontecimento do século XX. De 133 países seguiram para Roma 2540 Padres conciliares; o seu número ascendia a 2908, mas muitos não puderam comparecer. Pela primeira vez, houve mulheres convidadas e também observadores protestantes e ortodoxos.
Nos Concílios anteriores, a finalidade era um tema concreto e para condenar heresias. Neste, tratava-se do aggiornamento (actualização e abertura) da Igreja, não para condenar, mas para ir ao encontro do mundo moderno, estabelecendo pontes. Como disse João XXIII, para quem o Concílio devia ser um “novo Pentecostes”, a Igreja “julga satisfazer melhor as necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que renovando condenações”. Nos documentos conciliares, afirma-se que a Igreja é Povo de Deus, a hierarquia vem depois; afirma-se a colegialidade episcopal, promove-se o apostolado dos leigos; a revelação não é uma herança enregelada, mas viva e dinâmica; reformou-se a liturgia e introduziu-se o vernáculo; renovou-se a formação do clero; afirmou-se a liberdade religiosa; aprofundou-se o ecumenismo e o diálogo inter-religioso; a Igreja é um serviço a toda a Humanidade... Pergunto a mim mesmo muitas vezes o que seria hoje a Igreja sem o Concílio.
A festa da abertura terminou com um acontecimento “inesquecível”, segundo Ratzinger. Ao anoitecer, uma multidão de meio milhão de pessoas com tochas na mão concentrou-se na Praça de São Pedro e, com o luar, formou uma cruz imensa. João XXIII veio à janela, acenando: “Quando voltardes para casa, dai aos vossos filhos um beijo de boa noite e dizei: é um beijo de boa noite do Papa. Que saibam que o Papa sobretudo nas horas mais tristes e duras está junto dos seus filhos. Ele é um irmão que, por vontade de Nosso Senhor, se tornou pai.” Os trabalhos conciliares começaram, e estava tudo preparado pela Cúria para que se mudasse alguma coisa, ficando tudo na mesma. À frente, o cardeal Ottaviani, o chefe da então Inquisição, que disse: “eu peço a Deus para morrer antes de o Concílio terminar, assim posso morrer católico”. Mas um conjunto de cardeais da Europa central e do norte exigiu mudanças, liberdade para discutir livremente, e começou a revolução conciliar que “mudou a Igreja para sempre”, escreve Peter Seewald, que acrescenta: “o Cardeal Frings, de Colónia, e o seu conselheiro Ratzinger viraram o Concílio”. A revista Der Spiegel escreveu então que Frings, que era um conservador, tinha dado o tom no discurso de Génova. “Nele, pela primeira vez na sua vida, disse que a Igreja tinha de rever formas tradicionais, como o Index (dos livros proibidos), e a sua respectiva praxis, pois as pessoas são tremendamente críticas e hostis contra todos os sinais totalitários de comportamento. Exigiu também que se tinha de dar suma importância à ideia de tolerância, de atenção à liberdade dos outros. E sublinhou ainda o tema que no Concílio afirmou como central: a Igreja precisa de uma intensificação do poder episcopal.” O que a revista não sabia é que o texto completo do discurso provinha de Ratzinger. 
Frings tornou-se “um herói” e Ratzinger, “o mais jovem perito da maior e mais importante assembleia eclesial de todos os tempos”, “uma estrela”. O Concílio terminou em 1965 e Ratzinger, com 38 anos, encontra-se no cume da carreira, “tinha atingido tudo o que um professor pode querer: notoriedade, reconhecimento, influência.” Em 1966, ascende à Universidade de Tubinga, “o Olimpo da Teologia alemã”, onde reencontra o seu colega e amigo Hans Küng. Mas pouco depois deixa Tubinga que troca por Regensburg (Ratisbona). Que se passou? Este é o tema da próxima crónica. 
De qualquer forma, em 1970, apontando para a Igreja do ano 2000, ainda se pronunciou de modo aberto sobre temas complexos, em relação aos quais voltaria atrás mais tarde. A “Igreja tornar-se-á pequena. Com o número dos seus membros, perderá muitos dos seus privilégios... Conhecerá também certamente novas formas do ministério e ordenará como padres cristãos que deram provas, que têm a sua profissão... Juntamente com estes é indispensável o padre oficial como até agora. O futuro da Igreja não virá daqueles que só têm receitas... O processo será longo e difícil..., mas de uma Igreja interiorizada e simples sairá uma grande força. Porque as pessoas num mundo totalmente planificado sentir-se-ão indizivelmente sós. Com o desaparecimento de Deus, experimentarão a sua total e terrível pobreza. E descobrirão então a pequena comunidade dos crentes como algo completamente novo. Como uma esperança, como uma resposta pela qual secretamente sempre suspiraram, como pátria que lhes dá vida e esperança para lá da morte.” 
Também o celibato foi um tema debatido: “por um lado, a defesa do celibato, mas, por outro, deixar a questão em aberto.” Quanto era para ele importante o tema da ordenação dos chamados viri probati (homens de fé provada, casados ou não), mostra-se numa carta de 1971: “Ouço dizer que os bispos alemães se terão pronunciado contra; infelizmente, pois parecia-me ser o caminho para, com sentido e sem quebra da tradição, criar novas possibilidades.” Em 1972, Ratzinger manifestou-se também aberto a novas soluções para a possibilidade da comunhão para divorciados recasados. (Continua) 

Anselmo Borges no DN

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue