domingo, 16 de fevereiro de 2020

A morte medicamente assistida e a eutanásia

Crónica de Anselmo Borges 

«Numa sociedade economicista, de individualismo e egoísmo atrozes, ergue-se o perigo gravíssimo de pessoas serem "empurradas" a pedir a eutanásia e, pior, muitos interiorizarem inclusivamente a obrigação de a pedir. Isso não obriga a pensar?»

Não é por acaso que este texto tem por título "a morte medicamente assistida e a eutanásia". É que, em primeiro lugar, nestes debates de vida e de morte é preciso ser claro e não induzir em erro as pessoas de forma manhosa: morte medicamente assistida é uma coisa, eutanásia é outra... O grande filósofo Hegel lembrou a urgência de conceitos claros, pois "de noite todos os gatos são pardos" e, no meio da confusão, ninguém se entende, e, nessas circunstâncias, em problemas que têm que ver com o limite o mais provável é cair no abismo.
Evidentemente, a posição da Igreja na questão da eutanásia só pode ser, mesmo no caso de um referendo - a Conferência Episcopal Portuguesa acaba, tarde, de se manifestar favorável nas presentes circunstâncias ao referendo -, a de uma oposição contundente e propugnando a defesa dos cuidados paliativos e a presença plena, humana e cristã, junto de quem se encontra em dificuldades, na solidão, na dor, no sofrimento e a caminho do fim. Aliás, essa presença solidária tem de ser durante a vida toda, para vivermos dignamente, sabendo que da vida digna faz parte a morte digna: viver dignamente e morrer dignamente. Mas previno que o que está em questão não é, em primeiro lugar, a religião, mas valores fundamentais, constitutivos, da civilização, de tal modo que a aprovação da eutanásia significaria um retrocesso e mesmo uma ruptura civilizacional.
Embora compreenda os argumentos a seu favor - há vários textos meus nos quais explico esses argumentos -, quero que fique bem claro que eu me oponho à eutanásia e a que o debate sobre o seu pedido volte à Assembleia da República. Porque é que os principais partidos não debateram abertamente a questão durante a recente campanha eleitoral nem a colocaram nos programas? Não estou só a pensar nos perigos da rampa deslizante: lembro que, nos pouquíssimos países onde o pedido de eutanásia é legal, esta rampa ou plano inclinado existe de facto, com alargamento quantitativo e qualitativo de pedidos aceites e autênticos casos de abuso (homicídio) reconhecidos - por exemplo, está em curso na Bélgica uma acusação contra um pediatra por nove "eutanásias disfarçadas". E qualquer pessoa fica preocupada com a notícia que chega da Holanda "da pílula sem dia seguinte", como, no seu modo sempre arguto, atirou o eurodeputado Paulo Rangel: "Todas as pessoas que fazem 70 anos receberão como prenda de aniversário um comprimido com o qual podem suicidar-se. E depois quem é que controla o destino destes comprimidos? Às tantas, vamos ter gente a matar outra gente" (Público, 9 de Fevereiro). Porventura as pessoas com 70 anos valem menos do que quem tem 50 ou 30? Confesso: isto, a ser verdade, significa o colapso de uma sociedade.
Ainda no contexto da rampa deslizante, é preciso não ser ingénuo. Numa sociedade economicista, de individualismo e egoísmo atrozes, ergue-se o perigo gravíssimo de pessoas serem "empurradas" a pedir a eutanásia e, pior, muitos interiorizarem inclusivamente a obrigação de a pedir. Isso não obriga a pensar?
Há uma razão que diria metafísica para a oposição à pena de morte, a mesma para se opor à eutanásia. Penso, por exemplo, em L. Wittgenstein, para quem o mundo é o conjunto dos factos, verificáveis. Mas, para lá do verificável, há "o místico" (das Mystische), que "se mostra", o metafísico, o absoluto. Não como o mundo é, mas que o mundo seja é o místico, escreveu Wittgenstein. Deus também não é deste mundo, nem a ética, que é da ordem do dever ser e não dos factos. O morrer é deste mundo, mas a morte não é deste mundo. A morte, digo eu, é uma das faces do absoluto, a outra é Deus, e, por isso, não é deste mundo. Ora, a pena de morte é a condenação à morte eterna para este mundo, fechando a abertura à continuidade do processo de possibilidades, incluindo a do arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade. Nenhuma instância terrena poderá, pois, fazer o juízo final, definitivo, de uma pessoa. E é preciso contar sempre com o perigo do erro no julgamento. Aí está porque não se pode ser a favor da pena de morte nem a favor da eutanásia. Aliás, quando alguém pede a morte por eutanásia, está a pedir o quê? Que grau de liberdade tem? E se entretanto se arrepender e quiser recuar?... Ai, os mistérios da existência humana e da liberdade! A dignidade da pessoa humana, inviolável, convive com a vulnerabilidade e, por isso, do que precisamos é de uma ética da fragilidade e do cuidado.
Mais. Se algum dia se avançasse por esta via da legalização da eutanásia, o Estado ficaria com mais uma obrigação: satisfazer o direito ao pedido da eutanásia e seria confrontado com esta pergunta terrível: quem mata? Porque é disso que se trata, não se venha com o eufemismo enganoso, porque manhoso e mentiroso, de "morte medicamente assistida", pois assistência médica, psicológica, familiar, afectiva, pastoral, religiosa (se for o caso) todos querem. No que o Estado deve pensar é na urgência dos cuidados paliativos, que ainda não chegam à maioria dos doentes; num relatório recente (cf. jornal i, 16 de Janeiro), lê-se que de 102 mil doentes que preencheriam os requisitos para beneficiar de cuidados paliativos em 2018, apenas um quarto teve acesso a este tipo de resposta que visa aliviar o sofrimento físico e psicológico em casos de doença incurável avançada e progressiva. As lacunas são ainda maiores nas crianças: em oito mil menores com doenças incuráveis, só 90 tiveram acesso a este tipo de cuidados, 0,01%. Concluiu-se que faltam 430 médicos, 2114 enfermeiros e 173 assistentes sociais nesta área. Conclusão: perante a sobrecarga, o tempo dedicado aos doentes é pouco: os médicos têm em média 44,5 minutos por semana com cada doente (nove minutos por dia). O mesmo se diga dos enfermeiros e assistentes sociais.
É uma vergonha para uma sociedade querer debater e despenalizar a eutanásia quando ainda não tem uma rede de meios paliativos minimamente suficientes. Os doentes, em casos extremos, precisamente porque o Estado lhes não garante apoios suficientes para a sua existência minimamente digna, são colocados perante o insuportável, de tal modo que se ergue de modo dramático a pergunta: nessas circunstâncias, onde está a sua liberdade para pedir a eutanásia? Afinal, pedem a morte ou apoio e alívio na dor, para continuar a viver dignamente e morrer dignamente? Aí está a razão por que, no contexto da precipitação para que a eutanásia volte ao Parlamento, logo após a aprovação do OE para 2020, observam alguns e não necessariamente cínicos: a eutanásia poderia ajudar bastante certos orçamentos de Estado, a Segurança Social!...
Evidentemente, opor-se à eutanásia não é ser a favor da distanásia e da obstinação terapêutica, que podem ser imorais. Deve-se aliviar a dor, mesmo que isso apresse a morte. Uma coisa é matar e outra deixar morrer em tempo oportuno e com dignidade, sem prolongar a vida artificialmente e de forma desproporcionada.
O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, disse-o de modo perfeito. Cito uma entrevista sua a Marta Reis no jornal Sol, 11 de Janeiro. Em primeiro lugar, esclarecer: "O que temos de fazer, e esse é o aspecto mais importante, é dar o máximo de informação para o debate. Não é infrequente estar em reuniões com deputados, pessoas que se vão pronunciar, e confundem ainda eutanásia, a morte a pedido num caso de doença grave, com distanásia, que é prolongar a vida de uma pessoa indevidamente, prolongar a vida de alguém numa fase terminal em que o que se deve oferecer é o máximo de conforto."
E a autonomia do doente? Continuou Miguel Guimarães: "O doente tem autonomia para dizer que não quer fazer tratamentos. Um doente com cancro pode recusar um tratamento. Mas no caso da eutanásia, falamos de uma participação activa na morte, o código deontológico proíbe." Mesmo a nível internacional, "encara-se sempre a eutanásia como um acto médico. Não é. Não faz parte de nenhum compêndio que matar uma pessoa seja um acto médico, é a antítese do acto médico. Quando se diz que dar a uma pessoa um medicamento para matar tem de ser feito por um médico não percebo a justificação".
Chamo a atenção para o facto de, por exemplo, a França, que está a rever leis de bioética, ter excluído do debate a eutanásia e, no limite, ser favorável à sedação profunda e continuada.
Já quase em post scriptum, quero dizer que aceitei figurar entre os 101 mandatários, como o antigo Presidente da República Ramalho Eanes, ou o médico e antigo bastonário Germano de Sousa, de uma petição a favor de um referendo sobre a matéria. É que, no meio da confusão que indiquei no início, e quando até deputados, como ficou dito, não sabem distinguir entre eutanásia, distanásia, ortotanásia e suicídio medicamente assistido..., impõe-se um debate amplo, nacional, para que todos os portugueses sejam ouvidos e possam ficar minimamente esclarecidos sobre o que está em causa.

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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