no PÚBLICO
[1] Presos Políticos – Documentos 1970/1971 e 1972/1974 – Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1974
[2] Edgar Freitas Gomes Silva, Vencer o Medo. Arquitetura da Comissão de Socorro aos Presos políticos, no Prelo da Editora Afrontamento, Porto
[3] Cf. Nuno Teotónio Pereira, Tempos, Lugares, Pessoas, Edições Público, pp. 61-63
[4] Diogo Freitas do Amaral, O Antigo Regime e a Revolução. Memórias Políticas (1941-1975), Bertrand/Nomen, 1995, 320-321; Por teu livre pensamento. Histórias de 25 ex-presos políticos portugueses. Textos de Rui Daniel Galiza; Fotografias de João Pina, Assírio & Alvim, 2007
[5] Ver o artigo de Francisco Bethencourt, Democracia, in PÚBLICO (04.12.2019), e o de Irene Flunser Pimentel, Populismo de extrema-direita, o inimigo a combater, in PÚBLICO (13.02.2020)
O 25 de Abril pôs fim a uma longa ditadura, mas não podia, do pé para a mão, desenvolver uma cultura da responsabilidade democrática. Sabemos isso e não falta quem deseje, hoje, servindo-se das instituições democráticas, restaurar uma ditadura que não conheceu.
1. Ontem, no Auditório Camões (Lisboa), foi realizada uma Sessão Cultural inscrita nas comemorações dos 50 anos da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP). Cinquenta anos não é uma eternidade, mas é tempo suficiente para se perder a memória acerca do que não deve ser esquecido. A referida comissão teve, felizmente, uma existência breve, de 1969 a 1974, pelo melhor dos motivos: o 25 de Abril. O seu percurso está bem documentado [1]. Além disso, vai sair, em breve, um novo e interessante estudo sobre essa documentação com uma proposta de enquadramento, enquanto movimento social, que exige alguma discussão que não cabe nesta crónica [2]. Tentarei, ainda que brevemente, referir a sua originalidade exemplar.
Um grupo de cidadãos, integrado por dezenas de personalidades de sectores sociais, profissionais e áreas geográficas diversas, entregou na Presidência do Conselho de Ministros um documento, datado de 15 de Novembro de 1969, no qual anunciava a constituição da CNSPP, baseada no artigo 199 do Código Civil. Neste estava prevista a formação de comissões especiais, não sujeitas ao reconhecimento oficial, para acções de socorro ou beneficência. Os signatários consideravam que a existência de presos políticos era justamente uma situação de calamidade [3]. Deve dizer-se de calamidade nacional, na medida em que a polícia política, com diversos nomes ao longo dos anos, tentava fazer do medo a prisão do país e da intervenção política um risco ameaçado com a cadeia.
A CNSPP procurava responsabilizar o Governo e alertar a opinião pública perante a gravidade da permanente violação das liberdades e direitos fundamentais, pela actuação da polícia política todo-poderosa, ao abrigo de uma legislação penal perversa, sob arbítrio de um tribunal especial. Além do auxílio prestado aos presos políticos e às suas famílias, por forma directa, constituiu sempre preocupação desta comissão a constante chamada à responsabilidade de todos aqueles que integravam as engrenagens da repressão política.
Essas tomadas de posição tiveram as mais variadas formas de expressão, nelas se incluindo exposições de factos concretos sobre a situação dos presos, telegramas e cartas de protesto quanto ao tratamento de que eram vítimas pelas autoridades policiais e prisionais, denúncias de abusos e ilegalidades praticadas por essas mesmas autoridades.
2. O primeiro comunicado da CNSPP foi lançado ao país, de modo a não ser interceptado, a 20 de Janeiro de 1970. As actividades da referida comissão só foram possíveis pela aceitação que encontraram, tanto no país como no estrangeiro, especialmente na Europa. É de referir, também, o enorme interesse e a solidariedade que o problema dos presos políticos em Portugal merecia de organizações humanitárias, sindicais e mesmo políticas em diversos países, bem como de numerosos meios de informação.
Depois da queda do regime (25 de Abril 1974), uma vez que todos os presos políticos tinham sido libertados, foi convocada uma reunião para saber se a Comissão devia continuar ou não. Não foi sem discussão que se decidiu a sua extinção, pois as regras concretas de um regime democrático ainda não estavam claras e longe de serem consolidadas, como a seguir se verificou.
O último volume de Documentos (1972-1974) é precedido de uma Nota Prévia, datada de 5 de Outubro de 1974, que faz uma exacta avaliação do percurso da CNSPP e cuja leitura é indispensável para quem desejar conhecer essa aventura de resistência à ditadura.
Seria no entanto ridículo supor que, antes da CNSPP, não existiam movimentos e grupos de diversas configurações de socorros aos presos políticos. Mas sem ignorar e sem dispensar a actuação de qualquer das iniciativas existentes, aconteceu algo de inédito e exemplar. Esta comissão era constituída por pessoas de várias orientações ideológicas, políticas, culturais e religiosas com o objectivo de socorrer os presos políticos e suas famílias sem acepção de pessoas. Todos os presos políticos eram socorridos da mesma maneira pelas diversas intervenções da comissão. À comissão só lhe interessava a condição de preso político sem mais considerações.
Era a própria existência de presos políticos que constituía um atentado contra os direitos humanos. Era essa a primeira tortura que permitia todas as outras requintadas loucuras e arbitrariedades, destinadas a quebrar todas as resistências físicas e psicológicas do preso, que tinha cometido o crime de lutar contra a ditadura. É, aliás, essa situação que mostra a diferença entre democracias e ditaduras.
A actividade cívica, humanitária e política da CNSPP foi reconhecida pela Assembleia da República, atribuindo o Prémio Direitos Humanos de 2010 a dois dos seus membros – Frei Bento Domingues e Dr. Levy Baptista – em representação da Comissão, e com a reedição das 23 circulares informativas publicadas entre 1970 e 1974.
3. As hesitações referidas acerca da extinção da CNSPP não eram totalmente despropositadas. Em nome do êxito da revolução, surgiram várias iniciativas em contradição com o espírito das reivindicações da CNSPP. O Prof. Ruy Luís Gomes, perante um projecto de lei revolucionário, reagiu: “Este projecto é indigno dos gloriosos militares que fizeram a revolução de 25 de Abril. É profundamente anti-democrático, na parte em que autoriza a punição criminal da discordância política e, pior ainda, na parte em que repõe em vigor as hediondas ‘medidas de segurança’ com que o fascismo sempre perseguiu os seus opositores. Se este projecto, tal como está, é para ser transformado em lei, então mais-valia não ter feito Revolução nenhuma: bastava ter feito um golpe de Estado e pôr os novos carrascos a aplicar as mesmas leis dos antigos!” [4].
O 25 de Abril pôs fim a uma longa ditadura, mas não podia, do pé para a mão, desenvolver uma cultura da responsabilidade democrática. Sabemos isso e não falta quem deseje, hoje, servindo-se das instituições democráticas, restaurar uma ditadura que não conheceu [5].
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[2] Edgar Freitas Gomes Silva, Vencer o Medo. Arquitetura da Comissão de Socorro aos Presos políticos, no Prelo da Editora Afrontamento, Porto
[3] Cf. Nuno Teotónio Pereira, Tempos, Lugares, Pessoas, Edições Público, pp. 61-63
[4] Diogo Freitas do Amaral, O Antigo Regime e a Revolução. Memórias Políticas (1941-1975), Bertrand/Nomen, 1995, 320-321; Por teu livre pensamento. Histórias de 25 ex-presos políticos portugueses. Textos de Rui Daniel Galiza; Fotografias de João Pina, Assírio & Alvim, 2007
[5] Ver o artigo de Francisco Bethencourt, Democracia, in PÚBLICO (04.12.2019), e o de Irene Flunser Pimentel, Populismo de extrema-direita, o inimigo a combater, in PÚBLICO (13.02.2020)