Crónica de Anselmo Borges - A pena de morte e o inferno. 2
«Deus não condena ninguém, porque Deus é só Amor. Pode a pessoa autocondenar-se ao inferno? Significativamente, a Igreja nunca declarou que alguém em concreto esteja no inferno, nem mesmo Judas ou Hitler. No caso-limite de haver realmente alguém que se feche radical e obstinadamente ao amor, excluindo definitivamente Deus, então, não podendo, na morte, ser encontrado por Deus, porque o não aceita, anula-se definitivamente.»
1. Desgraçadamente, como disse o cardeal Carlo Montini, antigo arcebispo de Milão, também jesuíta e que o Papa Francisco quer seguir, a Igreja anda atrasada pelo menos 200 anos.
Este atraso é infeliz concretamente no que à pena de morte diz respeito. É uma vergonha, mas até 1969 no Estado do Vaticano existia a pena de morte. Podia não aplicá-la, mas estava vigente e só foi derrogada formalmente na Lei Fundamental em 2001 pelo Papa João Paulo II. E ainda constava até 2 de agosto de 2018 no Catecismo da Igreja Católica a legitimação da pena de morte. Felizmente, como aqui escrevi na crónica da semana passada, o Papa Francisco reescreveu esse artigo do Catecismo e quer que a Igreja faça campanha a favor do fim da pena de morte em todos os países e pronuncia-se contra a pena de prisão perpétua. "Nunca se pode castigar sem esperança; é por isso que sou contra a pena de morte e também contra a prisão perpétua interpretada como sendo "para sempre". Porque a todos deve ser dada a possibilidade de regeneração, a todos deve ser restituída a esperança.
2. Evidentemente, aqui chegados, coloca-se, concretamente ao crente, a questão da doutrina do inferno, que seria a condenação definitiva, eterna. Pergunta-se: alguém merece a condenação definitiva, eterna? Qual a relação entre uma liberdade finita no tempo e uma eternidade falhada, definitivamente, eternamente falhada? Uma pergunta imensa e dramática. A pergunta tem sentido, ao pensar na inscrição que, segundo A Divina Comédia, de Dante, na linha do "dogma" católico, se encontra à porta do inferno: "Lasciate ogni speranza, voi ch"entrate" (abandonai toda a esperança, vós que entrais).
Dizia-me uma vez o filósofo Ernst Bloch, numa conversa em Tubinga: pensando no inferno, seria melhor não existirmos, e "todos os condenados no inferno estariam de acordo comigo". Aliás, o inferno seria o sofrimento eterno sem qualquer finalidade... De modo paradigmático, David Hume argumentou (socorro-me da citação feita pelo teólogo Andrés Torres Queiruga): "É inaceitável um castigo eterno para ofensas limitadas de uma criatura frágil, e, ainda por cima, esse castigo não serve para nada, uma vez que se dá quando toda a peça está acabada, concluída."
Na presença do Deus que é amor incondicional, como diz a Primeira Carta de São João, julgo que também é legítimo pensar e esperar que, seja qual for o mal feito, haverá sempre algum ato de amor de todos, de cada uma e de cada um, que permite a Deus recriar para a vida eterna feliz todos os homens e mulheres..., mesmo se as possibilidades não realizadas neste mundo - a vida aqui, na liberdade, tem de ser tomada a sério e com consequências - Deus não as possa eternizar, elevando-as à plenitude. Seja como for, a Igreja nunca declarou que alguém esteja condenado no inferno. A doutrina sobre o inferno diz apenas sobre a grandeza da liberdade e de como é necessário tomá-la eminentemente a sério.
Dada a importância do tema, permito-me explicitar. Seja como for, todas as pessoas, crentes ou não, perguntam pelo sentido último da sua existência, vivem a angústia da liberdade e a exigência radical da justiça - bem e mal não são equivalentes -, e foram atormentadas pelos horrores do inferno e sabem como isso serviu o poder da Igreja...
Houve um tempo em que o inferno era um tema central dos sermões. Teólogos e pregadores, aterrorizados por uma sexualidade reprimida, por dúvidas atrozes de fé, por uma agressividade latente, compensaram a sua própria angústia projetando-a sobre os outros. Tudo com a melhor das intenções. Afinal, se o que esperava os hereges, os judeus, as bruxas, etc., era sem dúvida o inferno (lembre-se a doutrina do Concílio de Florença, em 1442, segundo a qual quem está fora da Igreja Católica "cai no fogo eterno, preparado para o demónio e os seus anjos"), então deveriam arder desde já, até porque, mesmo que não fosse possível salvar as suas almas, pelo menos a sua morte, pela espada, pela tortura e sobretudo pelo fogo, serviria de advertência para outros e a sua salvação. Assim, escreve Hans Küng, "conversões forçadas, condenação dos hereges à fogueira, perseguições dos judeus, cruzadas, a paranoia das bruxas, guerras de religião em nome de uma "religião do amor", tudo isso custou milhões de vidas humanas". O terrorismo exercido sobre as consciências pelas torturas do inferno e a que se estava condenado por um único pecado mortal, um pecado que andava principalmente ligado ao sexo, serviu realmente para a manutenção do poder da Igreja, mas é bem possível que, como escreveu o historiador católico Jean Delumeau, "porque as Igrejas do Ocidente não prestaram atenção suficiente aos argumentos dos "hereges" que recusavam acreditar na eternidade do inferno, se produziu desde o século XVI um movimento de recusa do cristianismo, identificado pelos libertinos como uma teologia do Deus que castiga".
Mas bem e mal não se identificam. Se a história tem um sentido, ele só pode ser o da liberdade. Então, o que se chama o dogma do inferno, na sua dramaticidade, diz: és livre, não tens a salvação assegurada automaticamente, podes falhar radical e definitivamente o sentido da tua vida. Quando olhamos para a história da humanidade, com todo o seu cortejo de horrores, de crimes, de infidelidades, de crueldade gratuita, de suor, de lágrimas, de sangue, de desespero, de traições, de desprezo, de indiferenças, de guerras, de massacres, de genocídios, de aviltamento, de torturas, causados por homens e mulheres a outros homens e mulheres e, concretamente, inocentes, de tal modo que a existência se tornou para eles absurda, um verdadeiro "inferno", compreendemos e exigimos, desde a raiz do nosso ser, que o algoz e a vítima não podem ter a mesma sorte. Por paradoxal que pareça, o dogma do inferno é a proclamação mais radical da liberdade. O inferno como possibilidade real para mim é advertência para a seriedade radical da existência livre, que de modo nenhum pode ser reduzida a bagatela ou vulgaridade. Neste sentido, o inferno não significa o castigo da tortura infligido "de fora" por um Deus implacável e sedento de vingança, mas o falhanço total da existência a que o homem pode autocondenar-se. Então, como interpretar teologicamente o inferno?
Deus não condena ninguém, porque Deus é só Amor. Pode a pessoa autocondenar-se ao inferno? Significativamente, a Igreja nunca declarou que alguém em concreto esteja no inferno, nem mesmo Judas ou Hitler. No caso-limite de haver realmente alguém que se feche radical e obstinadamente ao amor, excluindo definitivamente Deus, então, não podendo, na morte, ser encontrado por Deus, porque o não aceita, anula-se definitivamente. Este é o "inferno" enquanto "segunda morte", de que fala a Bíblia: o homem ou a mulher radical e obstinadamente maus não participam na plenitude da vida eterna de Deus, mas também não são eternamente torturados, pois, pela morte, simplesmente já não existem. Na morte, os maus são entregues à sua própria lógica: para eles, não pode haver vida eterna: a sua morte, escreveu o grande teólogo E. Schillebeeck, "é realmente o fim de tudo", o nada puro e simples, a morte definitiva, eterna.
O teólogo Andrés Torres Queiruga pensa, com razão, que se pode esperar mais e ir mais longe. Ninguém é absolutamente mau, e poderá a liberdade finita ter "uma opção tão absoluta que a leve a escolher o nada?". Assim, "conjugando os dois polos - um Deus que quer fazer tudo para salvar e uma liberdade que é limitada -, chegar-se-ia a uma autêntica mediação: Deus salva quanto e na medida em que "pode", isto é, quanto a liberdade finita lhe permite. Dado que esta não é total, Deus salva aquele resto de bondade que parece não poder ficar anulado por nenhuma ação má. Haveria, portanto, condenação real e definitiva, pois perde-se tudo aquilo que não se permite a Deus salvar, mas desapareceria a desproporção que parece intolerável entre o finito da culpa e o infinito das consequências". Há salvação, mas com "perda eterna de possibilidades, plenitude e felicidade": a pessoa empequeneceu-se por sua culpa e estará eternamente "menos realizada do que poderia".
Este é o sentido de eu dizer: não há inferno. Para maior explicitação, permito-me remeter para o meu recente livro: Conversas com Anselmo Borges.
Anselmo Borges no DN