“Se tudo continua igual, se os nossos dias são pautados pelo ‘sempre se fez assim’, então o dom desaparece, sufocado pelas cinzas dos medos e pela preocupação de defender o status quo.”
Papa Francisco
1. Poderá a hierarquia da Igreja Católica mudar não apenas de orientação, mas sobretudo a velha prática de adiar soluções urgentes para um futuro indefinido?
A pergunta é antiga e percorre toda a história de reformas dentro da Igreja. Eu próprio conheço esse lamento desde a minha juventude. Quando agora se diz que o Papa Francisco está a alterar perigosamente o rumo da Igreja, provocando muitas resistências e ameaças de cisma, há sempre quem acrescente, com algum cepticismo: são maiores as mudanças no discurso do que na realidade dos factos. Mais uma vez, está a perder-se um momento de graça divina e de inadiável necessidade eclesial.
Isto sabe a conversa de velhos: velhos conservadores e velhos progressistas. Não esqueço, no entanto, que foi de um velho, minado por doença incurável, que saíram as palavras e os gestos mais audaciosos no século XX. Foram os do papa João XXIII. Os seus sucessores não perceberam que a autêntica virtude da prudência abre luz verde à audácia das decisões ponderadas, superando a linguagem do oportuno e inoportuno. Para trás não há paz e não é do império da mesmice que se podem esperar soluções inéditas.
Se olharmos para a fotografia do Sínodo dos Bispos dedicado ao tema os jovens, a fé e o discernimento vocacional, 2018, temos a evidência de que não foi um sínodo de jovens. Foram bispos com idade de pais e avós a tentar entender os jovens sem, talvez, se darem conta que já não se trata dos jovens que eles tinham conhecido quando trabalharam – os que trabalharam – com essas idades. A cultura, que só pretende garantir o futuro repetindo o passado, não entende o espírito cristão: Eis que eu faço novas todas as coisas [1].
Importa perceber que estamos noutro mundo que é necessário conhecer e assumir, se pretendermos animá-lo de uma novidade mais profunda que supere esta Era da mera produção, do consumo e do divertimento.
Tomo, como parábola desta situação, um fragmento do texto de António Guerreiro, A geração dos filhos sem pais [2].
Também os bispos se reuniram numa época em que “entre a geração dos alunos e a dos professores existe um fosso, um hiato enorme que não é possível disfarçar e tem terríveis consequências. Esse hiato já seria grande e nefasto em quaisquer circunstâncias; ele é colossal sob as novas condições de transmissão do saber, da experiência, dos costumes, dos códigos de comportamento, em que se acelerou de maneira vertiginosa o tempo da inflexão e interrupção de uma cadeia hereditária.
O ‘antigamente’ já não é o tempo dos avós, é o tempo da nossa experiência: quem entrar hoje numa escola depois de um interregno de dez anos (dantes, considerava-se que as gerações se sucediam de 30 em 30 anos) entra num mundo diferente daquele que conheceu. Ou melhor, só não entra num mundo completamente diferente porque os professores são os mesmos, e quase todos a pensar na reforma. Quem não sentiu já, regressando à escola ou à universidade por onde passou, a estranheza inquietante que isso provoca?”.
2. Na cerimónia em que o bispo José Tolentino Mendonça foi incluído no colégio cardinalício, sendo um dos membros mais novos, o espectáculo que as televisões ofereceram era o de termos entrado num mundo em que a respeitabilíssima terceira idade é prevalecente no governo da Igreja.
No dia seguinte, foi a abertura do Sínodo sobre a Amazónia. O espectáculo não mudou. A homilia do Papa Francisco é, no entanto, de antologia: “Se tudo continua igual, se os nossos dias são pautados pelo ‘sempre se fez assim’, então o dom desaparece, sufocado pelas cinzas dos medos e pela preocupação de defender o status quo.” Teve o cuidado de lembrar que Bento XVI já tinha escrito: “A Igreja não pode, de modo algum, limitar-se a uma pastoral de ‘manutenção’ para aqueles que já conhecem o Evangelho de Cristo. O ardor missionário é um sinal claro da maturidade de uma comunidade eclesial.”
Francisco sublinhou: “Porque a Igreja está sempre em caminho, sempre em saída; nunca fechada em si mesma. Jesus veio trazer à terra, não a brisa da tarde, mas o fogo.”
Não se trata do fogo devastador da Amazónia, mas da virtude da prudência. Esta não pode ser confundida com atitudes de timidez ou de medo que paralisam, mas de audácia. É a virtude das decisões corajosas que se impõem a quem tem responsabilidades de governar e não de paralisar. O melhor será ler o texto na íntegra [3].
A corajosa homilia do Papa, na abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia, situa-se, no entanto, num mundo de pais e avós.
Se a sociedade vive em mudança acelerada, a hierarquia eclesiástica continua em velocidade reduzida ou, como se diz, a “passos de caracol”, sobretudo quando se trata de abordar questões que exigem soluções urgentes.
Se não nos resignarmos a uma Europa auto centrada, preocupada apenas com a desaceleração económica mundial que a vai afectar e donde desertam as interrogações mais profundas, acerca do sentido da vida pessoal e colectiva, colaboramos num mundo sem alma, sem compaixão, miseravelmente egoísta.
3. Não me parece que, para já, a religião esteja em condições de oferecer a energia necessária para levantar essas questões de fundo, que só podem nascer do reconhecimento da dimensão transcendente da vida humana.
A situação religiosa dos jovens, na Europa, está descrita num estudo recente da universidade inglesa St. Mary, de Londres (2014-2016). É uma situação impressionante em países de tradição cristã. Em 12 países deste continente, a maioria dos jovens, entre os 16 e 29 anos, admitem que não são crentes e que nunca ou quase nunca vão à Igreja ou rezam.
A República Checa é o país menos religioso da Europa: 91% dos jovens confessa que não tem qualquer filiação religiosa. A seguir vem a Estónia, a Suécia, os Países Baixos, onde a percentagem dos jovens sem religião está entre os 70% a 80%. Também noutros países, França, Espanha, se pode observar o declínio da crença religiosa.
Nesta crónica não podemos enumerar a situação de todos os países. O responsável deste estudo, Stephen Bullivant, perante este e outros dados, declarou que na Europa a religião está a morrer.
Como cristão não penso que seja o fim. É um desafio para a chamada Nova Evangelização. Sei que a situação actual dos ministérios ordenados da Igreja Católica não está em condições de dinamizar uma resposta a esse desafio. A ordenação de homens casados e de mulheres é indispensável, se não repetirem os caminhos que não levam a lado nenhum, mas o fim de um mundo pode e deve ser, para as pessoas de fé e de esperança activa, o nascimento de um outro.
Ao terminar esta crónica recebi a notícia da morte da Manuela Silva, uma das mais empenhadas militantes católicas das causas sociais e da renovação da Igreja em Portugal.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Apocalipse 21, 5
[2] PÚBLICO, Ípsilon, 04.10.2019
[3] Homilias no site do Vaticano