Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
1. A Quaresma deste ano está marcada por dois movimentos opostos: o da intensificação da Reforma da Igreja, anunciada no programa do Papa Francisco e o da contra-reforma, organizada e com sinais visíveis que mostrem quem está com uma e quem está com outra. Sabíamos que o hábito não faz o monge, agora querem convencer-nos que o cabeção e a batina fazem o padre. Quem se apresentar sem estes sinais não sabemos se está com o caminho aberto por Bergoglio ou não. Terá de o mostrar pelas suas opções pastorais e de vida pessoal. Quem exige que os fiéis se ajoelhem na missa durante a consagração e para receber a comunhão parece que não gosta muito do Vaticano II nem das ousadias do Papa Francisco. Dizem-me que certos párocos tentam resgatar a memória de lugares marcados na igreja, anteriores ao Concílio, mediante genuflexórios forrados para joelhos delicados. Parece que ainda não está previsto dividir o espaço das celebrações colocando as mulheres atrás e os cavalheiros à frente.
Quando se participa em missas solenes, com bispo ou cardeal, uma das distracções possíveis é a contagem das vezes que lhes põem e tiram o solidéu, a mitra e o báculo.
As novas tecnologias, como por exemplo iPads, tablets e e-readers – coisas que me ultrapassam -, estão a substituir missais e breviários, livros antigos muito veneráveis e pouco portáteis, com muitas vantagens económicas, com recursos imagísticos e musicais e prontos a servir, sem ter de incomodar grupos ad hoc para baptizados, casamentos e funerais e, ainda, um reportório de homilias previamente adaptadas aos públicos e pregadores mais diversos. Haverá quem diga, como a nordestina brasileira, quando na missa substituíram o latim pelo português: tiraram-lhe a decência.
É muito possível que isto possa suscitar um novo debate sobre simbologia e ritualidade litúrgica e seus dignos e indignos suportes.
2. Os recursos oferecidos pelos livros litúrgicos – ou as suas cópias, electrónicas ou não – para viver a Quaresma, tanto bíblicos como patrísticos, são uma verdadeira mina para o alimento espiritual e para a reflexão teológica, em função da transformação da vida nas suas diversas dimensões. Ao tentar fazer a ponte desse universo litúrgico com o mundo actual, podemos esquecer que sem as questões que nos surgem a nível pessoal, familiar, profissional, no contexto económico, político e cultural cairemos na tentação de colar duas realidades, tornando-as justapostas, sem se desafiarem mutuamente. Não se pode viver em dois mundos separados: algum deles sairá sacrificado. O cristianismo é incarnacionista: não há Deus por um lado e o itinerário humano por outro.
A Quaresma de cada ano, como Páscoa em devir, nunca é igual à do ano anterior, sobretudo quando vivemos num mundo em aceleradas mudanças, umas vezes para melhor, outras para pior. O Papa Francisco inaugurou a sua intervenção com um documento sobre a alegria do Evangelho, mas denunciando a suprema tristeza de uma economia que mata, quando só tem sentido como forma de desenvolvimento humano, sustentável, com todos e para todos. Crescem as faculdades de economia e gestão, os institutos de investigação económica. Há universidades católicas, muito cotadas, precisamente no âmbito da economia e da gestão. O Papa manifesta, continuamente, que outra economia é possível. Será que a economia é ininvangelizável, reino da divinização do dinheiro?
Na missa do passado Domingo, S. Mateus descreveu as tentações messiânicas de Jesus. Foram apresentadas como tentações
diabólicas, isto é, como solicitações para Jesus trair a sua missão, de forma demagógica ou populista, no seu estado mais puro, pela exibição do domínio económico, religioso e político. O diabo era muito religioso. Pedia para ser adorado. Se fosse adorado, acontecia, automaticamente, o milagre económico, religioso e político.
Para muitas pessoas, a narrativa das tentações é um faz de conta. Jesus era divino, não lhe custava nada sacudir as más solicitações. Foi só para nos dar exemplo.
Se fosse só para nos dar exemplo, não nos dava exemplo nenhum, pois nós somos humanos, falíveis e muitas vezes falidos. Se Cristo fosse apenas uma aparência humana, as suas tentações também não passariam de mau teatro. O Evangelho de S. Lucas, para mostrar que toda a sua vida foi tentada a trair a missão que livremente assumira, acrescenta: o diabo deixou-o até nova ocasião.
Se esta Quaresma nos ajudar a descobrir a condição humana de Jesus e os seus limites faremos uma das maiores conversões da história cristã.
Ao afastarmos tanto Jesus Cristo da condição humana, obrigando-o a não ser nosso irmão, teremos de encontrar santas e santos que sejam mais humanos do que ele, que estejam mais do nosso lado.
3. Descobrir que somos humanos vale bem uma Quaresma. Somos seres tentados. Tentados a trair a nossa condição. Temos dias em que somos capazes de tudo e outros em que julgamos tudo perdido. O mais corrente é a nossa mediocridade. Se não desistirmos dos apelos do Evangelho à nossa conversão, a vida será uma alegre trabalheira.
Na cristandade foram inventadas fórmulas para termos algumas férias: confessar-se ao menos uma vez por ano e comungar pela Páscoa da Ressurreição. Como quem diz: já que nem toda a gente pode ser santa, demos a todos a oportunidade de um mini-cristianismo.
Hoje, na Igreja, seja qual for a tendência das pessoas e dos grupos vamos descobrindo que fazer a vontade de Deus é a melhor coisa que nos pode acontecer. Porque se for o Deus de Jesus Cristo, só pode querer e trabalhar pela nossa alegria, sem nunca nos dispensar. Quando a palavra Deus suscitar a imagem ou a ideia de uma ameaça à nossa liberdade e à nossa criatividade, esse deus é o diabo, aquele que nos desvia de nós mesmos. A partir de Jesus, descobrimos que a única coisa que Deus nos quer é a nossa recriação, ir nascendo de novo, todos os dias, com ritmos diferentes para a nossa Páscoa eterna.
Como escreveu Agustina Bessa Luís, novo, só o que é eterno.