domingo, 10 de julho de 2016

As trapalhadas do Crisma

Crónica de Frei Bento Domingues 

“Será o recém-ungido que abandona a Igreja ou a Igreja que já não tem mais nada a dizer-lhe?”

1. Rui Osório, jornalista e pároco da Foz do Douro, na sua pertinente coluna na Voz Portucalense (2016.06.29) revela preocupações que não são exclusivas: “Se a minha confidência de pastor vos parecer pessimista, peço-vos desculpa, mas deixem-me desabafar: a prática do Crisma é uma das experiências pastorais mais frustrantes que tenho encontrado.
“Em tempos primitivos, os catecúmenos, depois de um longo crescimento na fé, entravam na piscina e eram lavados; saíam e eram perfumados com óleo do crisma; e acediam à mesa eucarística para serem alimentados.
“Hoje, não é tanto assim e andamos, na longa e agitada onda da cristandade sociológica, a surfar um pouco aturdidos entre o cansativo cristianismo de tradição e o sedutor cristianismo de opção.
“Pastoralmente, parece-me que, em vez da iniciação à fé cristã, o Crisma está em risco de se tornar no sacramento que marca o fim de uma certa educação e de pertença cristã construídas na areia.
“Já lhe chamaram a 'festa do adeus'! Os cristãos encontram-se no cais em despedida para outras andanças que não acertam no norte do cristianismo!
“Tenho boas razões para confirmar a «festa do adeus» de tantos a quem acompanhei na preparação para o Crisma, sobretudo jovens que completaram com assiduidade os seus dez anos de catequese e se despediram da Igreja ou a Igreja não lhes deu um novo porto de abrigo.
“Será o recém-ungido que abandona a Igreja ou a Igreja que já não tem mais nada a dizer-lhe?”
Talvez haja quem diga que uma citação tão longa é um abuso. Se abuso existe, é também um agradecimento a Rui Osório que tocou, como pastor e de forma exemplar, numa questão que outros, para não criar ondas, vão disfarçando o incómodo e atamancando soluções que o não são. Diria que preferem tornar o Crisma no grande sacramento da debandada.
Em certos casos, há dificuldade em aceitar para padrinhos de Baptismo e Matrimónio aqueles que são apresentados pelos pais ou pelos noivos. A escolha, por vezes, tem pouco a ver com o acompanhamento que os padrinhos devem dar aos seus afilhados. Em vez de se aproveitar a ocasião para refazer o caminho da fé cristã, opta-se pela via administrativa. Em alguns lugares, até se acabou com os padrinhos. Bastam testemunhas. Para não haver problemas desses no futuro, procura-se apressar a idade para o sacramento incómodo.

2. Deixamos de viver em regime de cristandade. A vida das comunidades cristãs já não é regulada pelo campanário nem pelo toque das Trindades.
Vale a pergunta: a orientação para receber o sacramento da responsabilidade eclesial e social da Fé cristã não deveria ter em conta a idade que, numa determinada cultura, se exige para assumir as exigências da vida adulta, social e familiar? Não se trata apenas de uma questão de idade, mas de um modo de entender o crescimento da responsabilidade de ser cristão, pois chegou a altura de ajudar os outros a crescer, a serem adultos na Fé.
É evidente que isto implica acabar com o hábito criado de julgar que a religião é para crianças e para o começo da adolescência. Essa mentalidade esquece o tempo das turbulências do crescimento humano. É esse tempo que deve ser evangelizado como preparação para enfrentar a novidade que é a de ser responsável pelo seu futuro e o dos outros, a nível familiar e profissional. Tempo de enfrentar o futuro da Igreja ao serviço da evangelização do mundo. Será também a melhor forma de combater o clericalismo tão denunciado pelo Papa Francisco. Não poderão aceitar ser apenas clientela de uma paróquia ou de um movimento. São chamados, por exigência sacramental, a descobrir os novos caminhos do Evangelho nos sinais dos tempos, que eles próprios devem marcar.

3. O que está em causa é a teologia dos sacramentos: antropologia sacramental ou sacramentologia antropogénica?, como pergunta Domingo Salado [1]. As normas litúrgicas e canónicas não bastam para uma pastoral lúcida da evolução da vida cristã no devir da existência humana, pessoal e social.
Faz-se o rito, está feito. Faz-se a cerimónia do Baptismo e está baptizado. Faz-se o Crisma e está crismado. Faz a primeira Comunhão, pode comungar, etc.. É o predomínio da causalidade mágica, do entendimento mecânico do célebre adágio ex opere operato [2].
O próprio Tomás de Aquino realizou, no interior da sua teologia, uma revolução muito esquecida. Passou do primado da causalidade ritual para o primado do signo. Os sacramentos inscrevem-se, antes de mais, no vasto mundo da linguagem simbólica e do regime cristão da incarnação, do Verbo na fragilidade humana. É propriedade dos sacramentos cristãos causarem aquilo que significam, no interior do percurso da Fé pessoal e eclesial.
Sem inscrever a pastoral dos sacramentos no âmbito de uma teologia marcada pelas ciências humanas, não há caminho para as trapalhadas que não são apenas as do Crisma. Teremos de regressar a estas questões.

[1] Antropología sacramental o sacramentología antropogénica? De la lingüística a la hermenéutica sacramental, Ciencia Tomísta, tomo 129, 418, 2002, pp 239-288.
[2] Fez-se, está feito.

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue