Funeral de D. João Evangelista
No dia 8 de Janeiro de 1958, realizou-se, em Aveiro, o funeral do primeiro bispo da Diocese restaurada, D. João Evangelista de Lima Vidal, presidido pelo vigário capitular, D. Domingos da Apresentação Fernandes. Participaram catorze prelados do Continente e uma multidão incontável de diocesanos e amigos do prelado.
D. João Evangelista, homem de Deus que encarnou os valores evangélicos e os transmitiu a quantos dele se abeiravam, no seio da Igreja e fora dela, foi também um ilustre aveirense que se apaixonava pelas coisas de Aveiro com um entusiasmo que nunca escondeu.
Escritor primoroso, com uma prosa poética que encanta (vale a pena ler o muito que deixou escrito e está publicado), sempre falou e escreveu sobre pessoas, por mais humildes que fossem, ou não visse nelas fontes inesgotáveis de sabedoria e fé, sobre terras e lugarejos, sobre eventos e efemérides, sobre projectos diocesanos e do foro civil, quando neles via propostas de felicidade para as comunidades.
Aqui o evocamos, com saudade, transcrevendo um texto antológico de sua autoria, muito conhecido, mas que vale sempre a pena reler:
Duas coisas no mesmo ser
"Eu nasci em Aveiro, ao que suponho na proa de alguma bateira. Fui baptizado à mesma hora, nas águas da nossa Ria. Abriram-se-me os ouvidos ao som cadenciado dos remos no mar, ao pio estrídulo das famintas gaivotas, ao praguedo inocente dos pescadores. Encheu-se-me o peito à nascença do ar salgado da maresia. S. Francisco de Assis chamava a estas coisas irmãos, chamava a estas coisas irmãs: o irmão Vouga, o irmão luar que à noite o prateia, os irmãos peixes, as irmãs espumas, areias, estrelas. Mas aqui há mais do que uma simples fraternidade, há mais do que a suave harmonia da natureza e da alma de Aveiro; chego a crer que há uma verdadeira encarnação, o encontro de duas coisas no mesmo ser. Nós, os de Aveiro, somos feitos, dos pés à cabeça, de Ria, de barcos, de remos, de redes, de velas, de montinhos de sal e areia, até de naufrágios. Se nos abrissem o peito, encontrariam lá dentro um barquinho à vela, ou então uma bóia ou uma fateixa, ou então a Senhora dos Navegantes. Assim plasmado de Aveiro, com os beiços a saber a salgado, a pingar gotas de Ria por todo o corpo, por toda a alma (...) eu sou uma nesga, embora minúscula, desta deliciosa aguarela de Aveiro; eu sou um pedaço da nossa terra (...)"