Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Natália Correia, a grande escritora, lutadora pela liberdade, nasceu a 13 de Setembro de 1923. Em sua homenagem, neste seu centenário, fica aí uma breve reflexão.
Estava-se nos anos 1976-1977 e eu, porque era Vice-Presidente do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, residia em Lisboa. Por isso, encontrei-me muitas vezes no famoso Botequim com Natália Correia, que fazia o favor de ser uma querida amiga. Nos inícios da década de oitenta, também fui convidado, como ela e representantes de partidos, pela Embaixada da então República Democrática Alemã para uma visita a Berlim Leste e, se cito este evento, é porque nele pude constatar, frente ao nazismo e ao estalinismo e ao Muro, o empenho de Natália na luta pela liberdade. Depois continuámos a encontrar-nos, uma das vezes até foi num jantar com o grande Vitorino Nemésio. Quando ela morreu, recebi um telefonema na Universidade de Coimbra: "A Natália morreu e tem de vir a Lisboa para dizer umas palavras, umas palavras de despedida, no funeral." Fui, triste, para essas palavras de despedida, com este final: ""Para onde vão os mortos?", perguntava o filósofo Bernhard Welte. "Para o Silêncio? Para o Nada? É este Nada que a todos espera. Que Nada? Não está, à partida, decidido como deve ser interpretado este Silêncio e este Nada. Trata-se de um silêncio morto ou de um Silêncio vivo, habitado?
Trata-se de um nada negativo ou de um Nada enquanto ocultação absoluta do Mistério vivo, como quando dizemos: aqui não vejo nada, mas sabendo que lá pode estar algo e até o essencial? Quando se olha para o Sol, não se vê nada, tal é o excesso de luz. Este nada é pura e simplesmente nada ou, pelo contrário, o Nada experienciado na morte é a figura do Mistério oculto que a tudo dá sentido e fundamento? Natália, foi no Espírito Santo, tal como o entendias, que acendeste a tua luz e cantaste o fogo do teu canto. Natália querida, no mistério da despedida, que agora mais misteriosamente te envolve, seja ainda o Espírito Santo que te guie!"
Ela era espírito-santista e ficou muito contente quando lhe disse que ruah, com múltiplos sentidos: ar, brisa, espírito, força, alento, interioridade, em hebraico é feminino. Lá está a Mátria em vez de Pátria e... Natália Correia vinha dos Açores e viveu o culto do Divino Espírito Santo e os "impérios", onde um menino é coroado, e as "sopas" do Espírito Santo, quando há comida para todos, conhecidos e desconhecidos, numa fraternidade sem igual...
Por isso, quando se fala do Espírito Santo e do Pentecostes, é preciso tomar consciência de que só se alcança a sua compreensão adequada e o verdadeiro sentido revolucionário disso, contrapondo o Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, "dá que pensar", como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.
Diz a Bíblia que Javé, Deus, ao ver a maldade dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homem e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada ainda hoje, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris -- desmesura -- que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da destruição. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se na barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.
Babel e a sua Torre são um mito de uma actualidade dramática e mesmo trágica. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em "povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações". Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas e das culturas, que constitui uma riqueza inaudita. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente, gigantesca, contra o desígnio de dominação.
Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna?"
(continua)
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia