domingo, 17 de abril de 2022

"É em Sábado que vivemos"

Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias

"Jesus estará em agonia até ao fim do mundo. Importa não dormir durante esse tempo."
Pascal

Celebrávamos anualmente a Paixão de Cristo, mas com o perigo de não irmos além de ritos muito certinhos, tantas vezes secos e insignificantes. Esquecêramos Pascal nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo. Importa não dormir durante esse tempo." Agora, com uma guerra tenebrosa em curso, sabemos que a Paixão continua e as personagens da tragédia são exactamente as mesmas.
Como acontece quase sempre, o poder religioso e o poder político, ao mesmo tempo que se guerreiam, juntam-se na defesa dos seus próprios interesses, que são os da manutenção e aumento incessante do poder. Assim, lá estão o sumo sacerdote Caifás - não se tinha Jesus erguido, na continuação dos profetas, contra o poder sacerdotal, que se servia de Deus contra o povo? - e a razão de Estado: era preferível matar Jesus a pôr em perigo as relações com Roma. Pilatos, o representante do Império, convenceu-se da inocência de Jesus, mas a Realpolitik não podia permitir o incêndio da sublevação do povo contra o Império. Por isso, lavou as mãos - a proclamação da inocência hipócrita! - e condenou-o à morte dos escravos: a cruz, com a morte mais horrenda. Nesse dia, Pilatos e Herodes, que eram inimigos, reconciliaram-se. O nome de Pilatos é dos nomes mais vezes pronunciados ao longo da História, pois está inscrito na confissão da fé dos cristãos. Mas é tal o desconforto que há aquele dito aplicado a quem se encontra fora do lugar, melhor, num lugar indevido: Estás aí como Pilatos no Credo.
Os soldados cuspiram-lhe, puseram-lhe uma coroa de espinhos, açoitaram-no... Significativamente, quando um lhe deu uma bofetada, Jesus, que tinha dito para dar a outra face, ele próprio não o fez, pois é preciso manter a dignidade: Se disse mal, diz-me em quê; se disse bem, porque é que me bates?" A multidão - essa, exactamente a mesma -, no Domingo de Ramos, clamou: "Hosana, hosana" e, na Sexta-Feira Santa, gritou: "Crucifica-o, crucifica-o". Não se pode confiar nas multidões, volúveis e manipuláveis.
Judas atraiçoou o Mestre. Vendeu-o por trinta moedas de prata. Ele faz parte da longa história dos traidores. Mas, pensando bem, não tinha sido ele próprio "atraiçoado"? De facto, ele esperava e empenhara-se com um Messias político, que tomasse o poder. Não podia entender que a revolução de Jesus era outra: a transformação radical do coração e a partilha e o serviço. Há sempre equívocos que levam ao desastre. Quando viu o seu erro, foi confessar o seu engano, mas não encontrou compreensão; arrependido, não quis ficar com o dinheiro que, espremido, derramava sangue, atirou-o para o Templo, e enforcou-se.
Pedro, no momento da prisão, puxou pela espada. Jesus, porém, mandou que a metesse na bainha, ficando a ecoar através dos tempos a palavra da não-violência activa: quem mata com ferros com ferros morre. Pouco depois, o mesmo Pedro também se acobardou: quando uma jovem insinuou que ele era discípulo de Jesus, começou a jurar que nem sequer o conhecia. Depois, tomou consciência, arrependeu-se e chorou amargamente, confiando no perdão do amigo que pregara o amor aos inimigos.
Entre Jesus, que representa o amor e a paz, e Barrabás, que representa a violência, a multidão foi incitada a escolher Barrabás.
Os discípulos de Jesus, quando viram tudo perdido, fugiram todos apavorados. Embora forçado, um homem de Cirene ajudou Jesus a levar a Cruz; na vida, pode haver sempre um Cireneu. Inesperadamente, um simpatizante tímido - Nicodemos - emprestou o túmulo. Os dois ladrões, que seriam dois terroristas, mesmo na iminência da morte, tiveram comportamentos diferentes: um arrependeu-se, o outro, desesperado, continuou a blasfemar. As mulheres foram quem manteve a dignidade: acompanharam-no até ao fim.
Antes de morrer, Jesus implorou o perdão para a Humanidade, também para aqueles que o torturavam e matavam: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". E rezou aquela oração misteriosa que atravessa os séculos, transportando a dor e o clamor a todo do mundo: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"
Neste drama todo, o que mais impressiona é que Deus a quem Jesus tratava com ternura como Abbá - Pai querido, Mãe -, não respondeu. As suas últimas palavras: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito."
Aparentemente, foi a derrota e o fim. Mais um crucificado.
Por isso, o enigma do cristianismo é este: Porque é que os discípulos, que, apavorados, tinham fugido, lentamente voltaram a reunir-se e foram anunciar, dando a vida por isso, que aquele Crucificado é o Messias, o Enviado de Deus e é nEle que está a salvação?
O que é que se passou? A revolução de Jesus é a revolução da imagem de Deus. Nunca ninguém tinha dito, por palavras e obras: Deus é bom, Pai e Mãe de todos. E não tolera a opressão da religião e do poder. Foi uma coligação de interesses religiosos e imperiais que assassinou Jesus. Ele não fugiu, não se desdisse, foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e do Amor. Foi neste quadro que os discípulos, reflectindo sobre o modo como Ele se relacionava com Deus, sobre o modo como viveu, como morreu, foram fazendo uma experiência avassaladora de fé, de que Ele, o Crucificado, está vivo em Deus para sempre. O Deus infinitamente poderoso e bom não podia abandoná-lo à morte.
Desde então, na expressão de George Steiner, "é em Sábado que vivemos": entre a Sexta-Feira Santa, as suas dores, os seus horrores..., e o Domingo de Páscoa, com a esperança da vida plena para todos os crucificados.

Anselmo Borges no Diário de Notícias

Padre e professor de Filosofia.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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