segunda-feira, 1 de julho de 2019

Frei Bento Domingues - Espiritualidade, mas que espiritualidade?

Bento Domingues

«Quem anuncia um curso de teologia não pode esperar grande adesão, mas se propõe um curso sobre uma espiritualidade desconhecida terá aos seus pés um mundo de curiosos de todas as novidades esotéricas.»

1. Será verdade que, no Ocidente, as religiões com os seus dogmas, catecismos, normas morais, esgotaram o prestígio que lhes atribuíram ao longo dos séculos? Ou será apenas a violência, em nome de Deus, que as desacreditou? Seja como for, a religião ganhou às religiões, a religiosidade ganhou à religião, a espiritualidade parece ganhar à religiosidade. O mercado das espiritualidades ganhou ao das religiões a la carte. As espiritualidades e sabedorias do Oriente tiveram um acolhimento inesperado no Ocidente. Mesmo no campo católico, repete-se que o século XXI ou se torna místico ou está perdido.
Quem anuncia um curso de teologia não pode esperar grande adesão, mas se propõe um curso sobre uma espiritualidade desconhecida, e quanto mais desconhecida melhor, terá aos seus pés um mundo de curiosos de todas as novidades esotéricas.
Existem sabedorias e espiritualidades que não estão ligadas a nenhuma confissão religiosa, mas constituem campos de busca de sentido existencial.
Este Papa encerrou uma época, muito recente, confiada aos Prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé, perfeitos em silenciar a liberdade no seio da Igreja.
Ele próprio não tem boas recordações da teologia que teve de frequentar como estudante, uma teologia de manuais, onde estavam previstas e congeladas as teses, as perguntas e as respostas. Desde a Alegria do Evangelho que sonha com «Faculdades de Teologia onde se viva a convivialidade das diferenças, onde se pratique uma teologia do diálogo e do acolhimento; onde se experimente o modelo do poliedro do saber teológico, em vez de uma esfera estática e desencarnada. Onde a investigação teológica seja capaz de se comprometer com um cativante processo de inculturação».
Está convencido que tanto «os bons teólogos, como os bons pastores, têm o cheiro do povo e da estrada e, com a sua reflexão, derramam óleo e vinho sobre as feridas dos homens». Para ele, a teologia deve ser «a expressão de uma Igreja que é um “hospital de campanha”, que vive a sua missão de salvação e de cura no mundo! A misericórdia não é só uma atitude pastoral, é a própria substância do Evangelho de Jesus».


2. O Papa Francisco incita os professores de teologia a que a centralidade da misericórdia se exprima nas várias disciplinas: na dogmática, na moral, na espiritualidade, no direito e assim por diante. «Sem misericórdia, a nossa teologia, o nosso direito, a nossa pastoral, correm o risco de se afundarem na mesquinhez burocrática ou na ideologia que, por natureza, quer domesticar o mistério».
Defende uma teologia do acolhimento que desenvolva «um diálogo sincero com as instituições sociais e civis, com os centros universitários e de investigação, com os líderes religiosos e com todas as mulheres e homens de boa vontade». A construção na paz de uma sociedade inclusiva e fraterna, assim como a protecção da criação, exige a colaboração de todos.
Está convencido de que este modo de proceder dialógico é a via para chegar até onde se formam os paradigmas, os modos de sentir, os símbolos, as representações das pessoas e dos povos. Importa «chegar até esse ponto – como “etnógrafos espirituais” da alma do povo, digamos assim – para poder dialogar em profundidade e, se possível, contribuir para o seu desenvolvimento». É fruto do anúncio do Evangelho do Reino de Deus o amadurecimento de uma fraternidade cada vez mais dilatada e inclusiva.
Nada disto é possível sem liberdade teológica. «Sem a possibilidade de experimentar estradas novas, não se cria nada de novo, e não se dá espaço à novidade do Espírito do Ressuscitado». A quem sonha com uma doutrina monolítica a ser defendida por todos, sem nuances, isto não lhe sabe bem. No entanto, é «essa variedade que ajuda a manifestar e a desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho[1]». Para conseguir este objectivo, é preciso uma revisão adequada da ratio studiorum.
Sobre a liberdade de reflexão, o Papa observa: entre os estudiosos, é preciso avançar com liberdade; depois, em última instância, será o magistério a dizer alguma coisa, mas não se pode fazer uma teologia sem esta liberdade. Na pregação ao Povo de Deus, porém, não se deve ferir a sua fé com questões disputadas. Estas que fiquem entre os teólogos. É a sua tarefa. Ao Povo de Deus é preciso dar a substância que alimente a fé e que não a relativize.
O Papa não está a embarcar numa onda de espiritualismo fácil. Sublinha, pelo contrário, que o “discernimento espiritual” não exclui os contributos de sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais, mas transcende-as. «Nem sequer bastam as normas sábias da Igreja. Lembremo-nos sempre de que o discernimento é uma graça. Em suma, o discernimento leva à própria fonte da vida que não morre, isto é, conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo[2]».
Uma teologia tão alerta só pode gerar uma espiritualidade de olhos bem abertos.

3. A dimensão espiritual, afirmada ou negada, está presente em todas as situações da vida. Como escreve o poeta Carlos Drummond de Andrade: Para isso fomos feitos/ para lembrar e ser lembrados/ para chorar e fazer chorar/ para enterrar os nossos mortos/ para isso temos braços longos para os adeuses/ mãos para colher o que foi dado/ dedos para cavar a terra/ (…) Fomos feitos para a esperança do milagre/ para a participação da poesia/ para ver a face da morte/ de repente nunca mais esperaremos/ hoje a noite é jovem; da morte/ apenas nascemos, imensamente.
Parece que os poetas não acreditam que a vida será regida apenas por super-computadores electrónicos[3]. Também não espero que um dia vá surgir, como pensava Jean Rostand, pílulas (tão obrigatórias como aprender a ler) destinadas a moderar a inveja, a dominar a ambição, a reduzir o desejo de poder, da força, da violência, de predomínio (as verdadeiras calamidades históricas) impondo aos seres humanos um sentido universal de solidariedade.
Isto seria um milagre: o homem tornar-se-ia humano através de um equilíbrio biológico sabiamente conseguido pela química[4]. Mas que teria isso a ver com um ser humano?

Frei Bento Domingues, O.P., no PÚBLICO 

[1] Evangelii gaudium, 40
[2] Gaudete et exsultate, 170; para todas as questões, desta crónica, relativas à teologia, ver: Papa Francisco, na Pontifícia Faculdade de Teologia da Itália Meridional, Nápoles, 21.6.2019.
[3] São cada vez mais espantosos os benefícios da inteligência artificial, assim como as esperanças e os receios que semeiam. Cf. Arlindo Oliveira, Inteligência artificial,Fund. Francisco Manuel dos Santos, 2019. Ainda não conheço os poemas dessa famosa inteligência.
[4] Cf. Chianca de Garcia, Cartas do Brasil, Edição O Independente, Lisboa, 2004, 19. 23. 132-133

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