Anselmo Borges
1 Estava já sentado para escrever este texto, quando me telefonam da portaria: que estava lá uma senhora, já de idade, que precisava muito de falar comigo. A senhora: "Como é que se pode acreditar em Deus que enviou o seu Filho para ser crucificado?" E eu: "Não se pode, minha senhora." Porque esse seria um deus bárbaro.
Em termos simples, foi assim. Pregou-se o pecado original - chamo a atenção para o facto de Jesus nunca ter falado em pecado original. De qualquer modo, pressupondo o pecado original, pensou-se que ele constituiu uma ofensa infinita a Deus, ficando uma dívida infinita para com Ele, que o ser humano não podia pagar. No contexto do direito feudal, Santo Anselmo teorizou sobre a doutrina da satisfação: Deus enviou então o seu Filho, que, sacrificado na Cruz, pagava a dívida, aplacando a ira de Deus e reconciliando-o com a humanidade.
Aí está um Deus sádico, pior do que um pai normal, sadio, um Deus que aliás contradiz o núcleo da mensagem de Jesus, que revelou que Deus é Pai-Mãe, de tal modo que a Primeira Carta de São João, a partir da experiência que os discípulos fizeram com Jesus, escreveu, na tentativa de dizer quem é Deus, que "Deus é amor incondicional". Este é o único Deus que é Evangelho, isto é, literalmente, notícia boa e felicitante, em quem se pode acreditar, entregar-se a Ele confiadamente na vida e na morte. O outro deus, tão frequentemente pregado e que tolheu e envenenou a vida de tantos, seria um deus sádico, em relação ao qual, portanto, só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.
2 Jesus não foi vítima de Deus, mas dos homens. O cristianismo constitui a maior revolução na história da humanidade: uma revolução de e para a liberdade, a mais humanizadora. E tudo com fundamento na nova compreensão de Deus. Jesus fez a experiência filial de Deus, que não é omnipotente no sentido da omnipotência enquanto dominação e arbítrio, mas Força infinita de criar. Deus tudo criou e cria por amor e o seu único interesse é a alegria, a felicidade, a realização e a plenitude de vida de todos os homens e mulheres. A partir desse encontro com Deus Pai-Mãe, Jesus fez o que Deus faz: amou a todos, por palavras e obras, a começar pelos mais frágeis, os excluídos, os tristes, aqueles e aquelas que ninguém ama. E ousou transgredir as leis religiosas, como o Sábado, porque "o Sábado é para a pessoa e não a pessoa para o Sábado". E enfrentou os sacerdotes e as leis, curando ao Sábado. E disse que o núcleo da religião na sua verdade essencial passa pelo compromisso a favor dos abandonados e não pelos rituais religiosos: "Eu tive fome e destes-me de comer, eu tive sede e destes-me de beber, eu estava nu e vestistes-me, estava na cadeia e no hospital e fostes ver-me." "E quando é que o fizemos, Senhor?" "Sempre que o fizestes a um destes mais pequeninos foi a mim que o fizestes." Nada de explicitamente religioso nem confessional. O combate religioso essencial trava-se na luta pela justiça, pela dignidade de todos.
Percebe-se, pois, que Jesus constituía um perigo para o Templo e para o Império. Como escreve J.A. Pagola, "nem o poder de Roma nem as autoridades do Templo puderam suportar a novidade de Jesus. O seu modo de entender e viver Deus era perigoso. Não defendia o Império de Tibério, chamava todos a buscar o Reino de Deus e a sua justiça. Não tinha pejo em transgredir a lei do Sábado nem as tradições religiosas, a sua preocupação era aliviar o sofrimento das pessoas doentes e desnutridas da Galileia. Não lhe perdoaram isso. Identificava-se demasiado com as vítimas inocentes do Império e com os esquecidos e explorados pela religião do Templo". Numa coligação de interesses de Jerusalém e Roma, foi condenado à morte e executado impiedosamente na Cruz. Assim, quem olha para a Cruz de Cristo, naquele rosto desfigurado, encontra e vê todas as vítimas inocentes da história, que gritam. É inquietante esta imagem de Deus, porque "não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes. Não podemos adorar o Crucificado e viver de costas voltadas para o sofrimento de tantos seres humanos destruídos pela fome, pelas guerras e pela miséria".
3 Jesus, na sequência da sua vida, morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor. Depois da desilusão da Cruz, os discípulos, lentamente, a começar por Maria Madalena, reflectindo sobre o modo como Jesus viveu e agiu, o modo como se relacionava com Deus, o modo como morreu, foram invadidos pela experiência avassaladora de fé de que o Crucificado está vivo para sempre em Deus: na morte, Jesus não encontrou o nada, mas o Deus vivo, que é Amor. Um mistério indescritível, no qual acreditaram e pelo qual deram a vida. Como me disse e escreveu Ernst Bloch, um dos maiores filósofos do século XX, o cristianismo "venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: Eu sou a Ressurreição e a Vida".
Há uma dívida incomensurável para com as vítimas inocentes, aqueles e aquelas que não viveram, multidões de homens, mulheres, crianças, talvez a maioria, cuja existência foi esmagada pelo opróbrio, a miséria, a ignomínia, o esquecimento mortal. Elas clamam por justiça. Mas quem fará justiça? A Escola Crítica de Frankfurt foi decisivamente marcada por esta pergunta. Por isso, M. Horkheimer ansiava pelo "totalmente Outro"; W. Benjamin declarou que não é possível pensar a história sem teologia; Jürgen Habermas, neste contexto, escreveu, citando J. Glebe-Möller: "Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama Deus." Aquele que tudo pode recriar, a partir do nada, para a Vida.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico