Georgino Rocha
De Jerusalém para o mundo
Jesus sabe que a sua vida corre perigo e pressente que os últimos dias estão a chegar. A paixão por dar a conhecer a novidade do Reino de Deus, de que é portador/realizador, leva-o a ser criativo, a inventar maneiras, ainda que apoiando-se em citações e reminiscências dos profetas. A paixão por despertar a consciência ensonada dos responsáveis políticos e religiosos impele-o a empreender novas ousadias, a enfrentar armadilhas fatais. A paixão por desvendar ao povo humilde a verdade do que está a acontecer leva-o a apresentar-se montado num jumento na cidade de Jerusalém. Esta realidade constitui o pórtico da Semana Santa que, hoje, se entreabre com a bênção e procissão dos Ramos e a proclamação da narração da Paixão segundo Marcos (Mc 14, 1-15, 47).
Jesus está nas imediações do monte das Oliveiras, na aldeia de Betfagé, vindo de Betânia, terra do amigo Lázaro e sua família. Sonha com uma nova oportunidade e quer criar um facto histórico de grande alcance simbólico. Chama dois discípulos e diz-lhes: “Ide à povoação que está em frente e, logo à entrada, vereis um jumentinho preso…Soltai-o e trazei-o” (Mc 11, 1-11). Eles assim fizeram.
E o sonho converte-se em realidade. Entregam o animal a Jesus, preparam a montada, estendendo pelo dorso capas de protecção. Jesus sobe e começa a procissão rumo a Jerusalém, cidade do Templo que está ao alcance da vista. Os acompanhantes e outros peregrinos vão-se incorporando e o barulho aumenta. Capas estendidas, ramos de verdura agitados, gritos de hossana e outras aclamações são sinais da sua alegria e do seu entusiasmo. Cena, agora, evocada nas famílias e comunidades cristãs, a testemunhar a robustez da convicção religiosa e da fé católica numa sociedade que se afirma laicizada e, em que grupos aguerridos, teimam em impor a sua ideologia intolerante.
Jesus, na sua pedagogia de mestre, gosta de recorrer a ditos e sentenças, a parábolas e metáforas, e a outras formas de comunicação familiares à cultura semita e acessíveis à mentalidade dos ouvintes. O grão de trigo, a serpente erguida e o templo surgiram nas leituras dos últimos domingos Hoje, é o jumento e o cortejo para a cidade. E Ele a ser protagonista. Mais tarde vêm os escritos oficiais que são memória fiel da substância da mensagem de Jesus, com algumas modulações das comunidades e dos autores dos Evangelhos. Modulações que não alteram, mas configuram em algumas situações.
A procissão avança rumo ao templo onde Jesus esperava encontrar fiéis devotos e responsáveis públicos. Entra, olha em redor e sai porque “já era tarde”. Regressa a “Betânia com os Doze”. Tinha sido uma jornada singular. Agora, no remanso da casa onde se hospeda, pode rever o fio dos acontecimentos e confrontá-los com o seu propósito de dar a conhecer a novidade do Reino. Os episódios vão deslizando: templo vazio e deserta a esplanada (grande símbolo da fase em que se encontra a situação religiosa e política), o povo entusiasmado com a evocação do Messias à maneira de David (homem de guerra que se impôs a adversários e inimigos), apóstolos e discípulos atentos e silenciosos para poderem testemunhar, um jumento de serviço para o transportar e simbolizar o rosto da realidade em curso. E ele, só ele, a medir o alcance e a vivenciar o momento decisivo daquele dia memorável. Com memória afectiva... E nós como vivemos esta paixão de Jesus, a novidade do amor que, livremente, se entrega e tudo suporta pelo nosso bem maior, a salvação definitiva?
“Jesus é o Rei-Messias que vai confrontar-se com o centro da sociedade judaica, simbolizada por Jerusalém e pelo Templo, sede do poder económico, político, ideológico e religioso. Ele entra na cidade não como rei guerreiro mas como simples homem, humilde e pacífico. Ele traz consigo a inversão de um sistema de sociedade apoiada na violência da força militar, que defende os privilegiados. O povo aclama-O como aquele que traz a verdadeira justiça”. (Comentário da Bíblia Pastoral a esta passagem de Marcos).
A aclamação dos acompanhantes a Jesus ecoava pela encosta do monte e vale do Cédron. “Bendito o que vem em nome do Senhor”, a citação do salmo 118, ressoava às portas da cidade e anunciava a libertação esperada. O jugo estrangeiro será quebrado. O tom triunfalista brota do coração de cada um e irmana a todos na aclamação comum. “Ninguém pensava que para recuperar a paz da humanidade com Deus, em Deus e no interior de cada um, seria necessário buscá-la na cruz em que o Filho desse mesmo Deus haveria de assumir, com o seu amor, o maior conflito da humanidade: a própria morte. (A. D. Ruiz, Homilética, 2018/2, p. 176).
E ainda hoje custa muito, mas dá enorme alegria, aceitar a cruz como caminho da luz, a firmeza da convicção e a mansidão do coração como afirmações da fé confiante, a disponibilidade serviçal como atitude constante que mergulha as suas raízes no legado que Jesus nos deixou.
Jesus, em Betânia, prevê o seu futuro imediato. Com realismo razoável. Sem fantasias doloristas, nem ingenuidades “simplórias”. Com amor apaixonado pela nossa salvação. Seria bom poder acompanhá-lo no seu processo de morte que faz brilhar a esperança da ressurreição. Quem puder participar nas celebrações litúrgicas, aproveite e abra o coração agradecido e reze em assembleia. Quem tiver de ficar por casa, páre uns instantes perante a televisão e veja alguma transmissão referente à paixão do Senhor Jesus. Quem estiver no seu trabalho profissional, procure sentir-se em comunhão com todos/as os que, com o seu esforço abnegado, colabora na construção da sociedade humanizada querida por Deus. Que cada um/a possa dispor de um tempo de interiorização, de silêncio contemplativo, de adoração afectiva. Aproveitemos a oportunidade para criar um espaço libertador do frenesim da vida corrente. A Paixão do Senhor convida-nos a saborear outras dimensões do amor de doação.