Reflexão de Georgino Rocha
«A civilização do amor
só será possível contigo
como comunidade de vida
em relação»
Esta exortação “faz a ponte” entre o grito confiante de Bartimeu e a atenção que Jesus lhe quer dispensar. Condensa e exprime o desejo recíproco do encontro, do diálogo pretendido, da compaixão suplicada. Mc 10, 46-52. Evidencia a situação de quem está retido à beira dos caminhos da vida e dos que, livremente, vão fazendo o seu percurso, integrando-se nas multidões ou acolhendo-se a grupos de preferência. Lança luz sobre a família na pluralidade das suas configurações, a atitude sábia a cultivar preconizada pelo Sínodo que, hoje, conclui os seus trabalhos, os belos testemunhos de quem vive e contempla o amor conjugal na sua luz irradiante, os pedidos sentidos e persistentes de tantos divorciados e recasados que esperam uma oportunidade para verem a sua dignidade e integração mais reconhecidas na Igreja.
Marcos narra o episódio do cego de Jericó, colocando-o, pedagogicamente, após a tensão surgida entre os apóstolos por causa de saber quem entre eles é o maior e antes de se “fazerem ao caminho” que o Mestre decididamente ia tomar rumo a Jerusalém. Aqui, se desvendará quem é o primeiro no reino de Deus: o que, por amor, a tudo se sujeita, mesmo à morte de cruz. O autor pretende “desenhar” o perfil do verdadeiro discípulo.
Bartimeu sente as limitações e sofre as consequências resultantes do seu estado, numa sociedade legalista e discriminatória, A necessidade força-o a pedir esmola, saindo para os caminhos por onde passavam os transeuntes. Um dia ouve dizer que Jesus de Nazaré ia a passar e dá largas à sua voz reprimida, gritando: “Filho de David, tem compaixão de mim”. Esta súplica mostra a sua confiança em ser atendido, pois, como outrora David protegia os seus súbditos necessitados, assim agora – pensa o cego – Jesus lhe iria valer, compadecendo-se da sua situação.
A multidão tenta abafar o seu grito, repreende-o e manda-o calar. Ele, porém, não está disposto a perder a oportunidade e insiste. Vence com a sua persistência as tentativas de o silenciarem. Que lição para os tempos que correm! Resistir à onda avassaladora da dignidade humana, à nivelação igualitária de todas as expressões do amor sexuado, à redução privada do destino universal dos bens, à discricionária solidariedade subsidiária, à imposição dos modelos de educação e à exclusão de qualquer outro tipo que não seja a escola estatizada, à proibição do direito dos cidadãos à escolha da educação e de expressarem em público a sua fé. Dar voz aos gritos abafados dos idosos solitários, às lágrimas dos espoliados dos bens de sustento, às dores das vítimas da conjuntura económica, aos gemidos dos “sem voz” nesta crise alarmante.
Jesus detém-se, manda-o chamar e espera. O recado chega depressa. Que dita não terá vivido Bartimeu naquele instante! E ainda por cima com o apoio amigo de quem lhe transmite a mensagem. Momentos únicos na vida. “Coragem! Ele chama-te”. Que alegria sentirão as famílias ao verem-se chamadas pela Igreja na sua ternura de mãe a percorrerrem com ela os caminhos da verdade que liberta e da misericórdia que acolhe, com desvelo, o pecador perdoado. Coragem, família, o alicerce firme de uma sociedade humanizada e harmoniosa, está em ti e no desempenho das funções naturais enriquecidas pela sabedoria das culturas e pelas lições da história. A civilização do amor só será possível contigo como comunidade de vida em relação, de escola do perdão, de espaço de comunicação de corações irmanados no mesmo objectiivo: a felicidade de todos e de cada um dos teus elementos.
O episódio de Bartimeu constitui um símbolo de grande alcance. O encontro dá-se, o diálogo clarifica o pedido e a compaixão manifesta-se. Jesus declara-o curado, devido à sua fé confiante. O cego recupera a vista e segue Jesus pelo caminho, rumo a Jerusalém, onde verá “coisas maiores”: o amor feito doação que brilha na morte tenebrosa da cruz e na ressurreição refulgente da sepultura na manhã da páscoa. Oxalá a família liberta das possíveis “cegueiras” que a podem atormentar cresça na luz da sua verdade original iluminada pelo amor de doação de Jesus ressuscitado, o rosto da misericórdia de Deus Pai.