Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
Frei Bento Domingues |
1. Creio que a nossa ressurreição depois da morte é tarefa exclusiva do Deus dos vivos. Está bem entregue.
É a ressurreição dos mortos-vivos, dos sem rosto, dos mais pobres, dos mais desfavorecidos, dos não rentáveis, dos ejectados do círculo virtuoso do liberalismo económico, que constitui o desafio lançado a todas as pessoas de boa vontade. A peça de teatro de Jean-Pierre Sarrazac, O Fim das Possibilidades - uma Fábula Satânica –, encenada por Nuno Carinhas e apresentada nos TNSJ e TNDII [1], mede-se precisamente com o que há de mais arcaico e persistente no livro de Job, confrontado com as características da crise actual, aprofundando, em parábola, o seu conhecimento, a partir de muitos afluentes.
Temos de enfrentar a desesperança, mas sem recorrer à publicidade enganosa: “o futuro está de volta”. José Silva Lopes era considerado um dos maiores economistas do país, mas não confundia a esperança com ilusões. Recebeu o Expresso [2] para uma entrevista, dois meses antes de morrer. Temos, agora, acesso à sua opinião sobre algumas questões incontornáveis da nossa actualidade.
Segundo Silva Lopes, a austeridade está para durar e só por si não resolve nada. Os resultados da austeridade são zero ou mesmo negativos, como ficou demostrado na Grécia. Por outro lado, em Portugal, os donos das grandes empresas distribuem muitos dividendos ou tiram dinheiro às empresas para o colocar no estrangeiro. Constituíram grandes dívidas cá para não pôr o (dinheiro) deles na empresa, ou até para o tirar.
Com o subsídio ao abate de carros, arranjamos empregos para a Alemanha, em vez de os criar em Portugal. Há muitas palavras sobre exportações, mas não correspondem a investimentos novos a elas destinados e não travámos as importações. Atreveu-se a dizer que o governo sabe pouco de economia. Destaca, no entanto, que tivemos duas sortes enormes: a descida do preço do petróleo, que é um alívio extraordinário, assim como a baixa nas taxas de juro.
2. Uma das nossas situações mais calamitosas é a questão demográfica, mesmo tendo em conta os 22% de desempregados da população activa. No entanto, a ministra das Finanças, na sua mensagem aos novos, confia no alcance genesíaco da sua divina palavra: jovens, multipliquem-se! Com o aumento de cortes drásticos no abono de família, é de pasmar este encorajamento. A taxa de fecundidade é de 2 filhos por mulher em idade fértil. Não se vai além dos 83.000 nascimentos por ano. Por cada 100 crianças, existem 133 velhos. Será o aumento da esperança de vida o nosso pior inimigo?
Sem abandonar os problemas caseiros, a Revista do Expresso [3] resolveu levar-nos até às tribulações da governação europeia, que também são nossas. A longa entrevista de Cristina Peres a Antony Beevor, reputado historiador da II Guerra Mundial, goste-se ou não, merece atenção.
Para este observador, estamos numa sociedade pós-democrática. Só agora começamos a ver os efeitos de mudanças que ocorreram nos anos 80 e 90. Foi aí que aconteceu a grande revolução que ainda estamos a tentar compreender. Nessa altura, houve uma combinação de acontecimentos que vai obrigar os historiadores a esperar mais 50 anos para concluírem se todas essas alterações estavam ligadas ou se foram pura coincidência: mudanças geopolíticas da Guerra Fria, mudança económica, colapso do controlo do comércio e a globalização; esta é a maior mudança de todas e teve como efeito directo a diminuição do valor do trabalho, em quase todo o mundo. Não se pode “desinventar” a internet.
Os governos perderam o controlo sobre as suas fronteiras virtuais e económicas. A subida incrível do poder das empresas internacionais teve, muitas vezes, efeitos aterradores. Para A. Beevor, é grotesco ouvir Junker falar de valores europeus quando foi ele que introduziu, em Bruxelas, todas as vantagens fiscais para as multinacionais.
3. A entrevista toca em muitas questões. Para este historiador, o verdadeiro desastre foi o culto do multiculturalismo, uma agressão aos países de acolhimento da imigração. As ameaças de terrorismo vão exigir um controlo permanente da vida dos cidadãos, a morte da democracia.
À medida que o Estado Islâmico avançar, aumentarão as migrações e as tensões sociais. Mesmo assim, a Europa será olhada, cada vez mais, como osalva-vidas do mundo. A democracia, com todos os seus defeitos, é considerada o melhor regime político, mas está em risco, mesmo nos países onde tinha mais raízes. Perdeu-se a autoconfiança nas suas capacidades. Também aqui estamos no fim das possibilidades, acima evocadas.
Os governos, ao ficarem nervosos, passam a ser ligeiramente autoritários e a tomar decisões arriscadas, por falta de contacto com a realidade do dia-a-dia dos seus povos.
É verdade: pessoas, povos e testemunhos de civilizações estão ameaçados. Os cristãos que o digam! A ressurreição e a expansão da democracia – o poder do povo – não podem ser adiadas. São um bem cada vez mais escasso. Importa ressuscitá-las, dentro e fora da Igreja.
[1] Teatros Nacionais de S. João no Porto e de Dona Maria II em Lisboa
[2] Cf.11.04.2015
[3] Id.