sábado, 8 de fevereiro de 2014

O Papa e o maldito sexo. 1

Crónica de Anselmo Borges 




Não. Francisco não é o Papa dos "pobrezinhos", ao contrário do que, com menosprezo, escrevem certos comentadores. Ele é o Papa de todos, na justiça, na solidariedade, nas reformas da Igreja, e é esperável que tenha êxito.

Tem gigantescos desafios pela frente e, entre eles, está certamente a questão da sexualidade e da família no mundo actual. Nesse sentido, lançou um inquérito dirigido a todos os católicos do mundo e não apenas aos bispos e aos padres, precisamente sobre este tema, de tal modo que os fiéis todos puderam exprimir-se livremente a Roma, o que nunca tinha acontecido ao longo dos dois mil anos da Igreja. O Papa quer ter conhecimento directo da experiência e do pensar das pessoas sobre estas temáticas. Antes, a Cúria era informada pelos bispos, contendo os seus relatórios "mais desejos piedosos do que factos", como refere a Der Spiegel da passada semana (27 de Janeiro). Não se conhece ainda o número de respostas nem os seus resultados - em Portugal, o interesse parece ter sido diminuto e não se viu empenho forte por parte da Igreja oficial -, mas eles constituirão uma base de reflexão para o Sínodo extraordinário dos Bispos, em Outubro próximo.

O número referido da Der Spiegel, com capa com o título acima - Der Papst und der verdammte Sex -, adianta já respostas de algumas das 27 dioceses alemãs, mostrando "o abismo entre a Igreja e os fiéis". Mesmo na Baviera conservadora, 86% dos fiéis não consideram pecado a utilização da pílula ou do preservativo; 63% dos casados que voltaram a casar continuam a comungar e 90% não foi por causa disso que o não fizeram; 70% declararam que nas fases difíceis da separação não receberam apoio por parte da Igreja.

Muitos condenaram a doutrina católica por "estranha à realidade" e alguns, atendendo à linguagem das perguntas, sentiram-se enquanto "europeus da Europa Central a recuar pelo menos cem anos". Segundo a BDKJ (União dos católicos alemães - juventude), "a moral sexual católica não tem qualquer importância para nove em cada dez jovens católicos"; "sexo antes do casamento e anticonceptivos fazem evidentemente parte da sua vida em relação". Ainda segundo a BDKJ, 96% das pessoas que mantêm "vida sexual" sem casamento católico não têm nenhum problema com isso e, apesar disso, os jovens católicos participam nos sacramentos. O Vaticano está enganado quando pensa que os casais só depois do casamento vivem e dormem juntos. Uma vida em comum à experiência "é hoje uma realidade de que já se não pode abstrair", comunica a diocese de Augsburgo. E assim por diante, na sequência alfabética das dioceses, até Würzburg, onde "uns 90% dos casais praticam uma vida em comum ad experimentum" - Friburgo: "a vida comum antes do casamento pela Igreja não é nenhum caso extraordinário, mas normal".

Alguns sentiram-se inclusivamente "chocados", quando o interrogatório usa, para os divorciados, a expressão "situações irregulares", sendo excluídos da comunhão e não se tendo a Igreja preocupado com os seus "problemas" ou "necessidades de fé". Outro grupo que recebe grande apoio da base é o dos homossexuais. Comunidades houve que acharam muito importante que se acrescentasse um ponto às perguntas do Vaticano, exigindo que se ponha fim à lei do celibato obrigatório.

Os resultados das respostas, que dão um mau testemunho da instituição eclesiástica e mostram a discrepância entre a doutrina e a realidade mereceram este comentário do bispo de Mainz, o famoso cardeal Karl Lehmann, uma voz constante a favor de um catolicismo aberto: "Estes resultados, mesmo que não sejam representativos, testemunham e fortalecem a impressão de uma situação infeliz, fatal." "Há muito que já sabíamos", disse sobre o profundo abismo entre o povo fiel e a hierarquia, "muita coisa foi reprimida".

Os fiéis exigem agora a publicação integral dos resultados. Seja como for, mesmo com todas as suas deficiências, o inquérito desencadeou uma dinâmica que será difícil parar. A pergunta é: como vai Roma lidar com a questão?

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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