terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Um Conto de Natal

Regresso à prisão 


Véspera de Natal. Na grande cidade sente-se o furor das últimas compras e da correria dos transeuntes para os locais onde irão festejar em família esta noite tradicional ligada ao nascimento do Menino Jesus. Indiferente ao que o rodeia João Luís aproxima-se do Estabelecimento Prisional, cabisbaixo e triste, um saco às costas, única ligação com o passado recente em que sentiu alguma felicidade. Ali estava de novo junto do local onde passara quase um ano e desta vez para se entregar voluntariamente. Chegou à porta, tocou a campainha e esperou. 
Tudo começou dois anos atrás. Enviado para a grande urbe pela instituição que lhe substituíra os pais que perdera em criança, depressa abandonou os estudos que viera fazer. Conhecera um amigo com quem tinha alguma afinidade e foi atrás da amizade que a sua presença lhe proporcionava. O amigo trabalhava numa Bomba de Gasolina e este passou a ser o local de vida de João Luís. Disse ao amigo que lhe ia aumentar as vendas e por lá foi ficando. Enquanto o amigo abastecia João Luís limpava os vidros. Em troca do ar sisudo de alguns clientes receando o pedido duma gorjeta, João Luís atirava-lhe: “é oferta da casa”. Outros, porque o serviço era oportuno, contribuíam com alguma coisa. João Luís agradecia não deixando de lembrar que “era oferta da casa”. 
O patrão apercebeu-se da presença do simpático colaborador que ia sacando umas sandes e uns sumos nem sempre pagos, mas talvez porque o movimento da caixa vinha aumentando, fechou os olhos à acção do perspicaz assistente. Acabou por autorizar o empregado a proporcionar-lhe meios para uns lanches mais adequados. Saberia ele que João Luís pernoitava no local de trabalho? É verdade: tinha lá o seu cantinho. O tempo foi passando e já se vislumbrava uma oportunidade de emprego efectivo no local. Mas um dia João Luís ausentou-se e nessa noite houve um assalto à Bomba de Gasolina. Veio a polícia, pergunta atrás de pergunta, não tardou muito, João Luís estava preso preventivamente, por forte suspeita de co-autor do assalto. De nada valeu o aval do patrão e do amigo considerando o rapaz pessoa incapaz de tal gesto. 
Na cadeia ninguém percebia como uma tal criatura ali tinha ido parar. Os presos gozavam com a história, os guardas cautelosos ficavam perplexos com o ar bonacheirão do preso e a directora do estabelecimento condoía-se com a situação: tinha um filho da mesma idade e com o mesmo nome. Não tardou muito tempo, João Luís tinha tarefas que lhe permitiam uma certa mobilidade no estabelecimento. Uma delas, zelar o jardim do pátio exterior, altura em que era acompanhado por mais um ou dois presos e um guarda. Durante estas tarefas João Luís regalava a vista para o exterior: uma avenida e mesmo em frente instalavam uma nova Bomba de Gasolina. Isto fascinava-o: saberiam eles conquistar a clientela? Como gostaria de ajudar… Naquele dia trabalhava sozinho no jardim. 
O guarda ausentava-se frequentemente para se inteirar do desenrolar do derby futebolístico e a porta para o exterior abriu-se com a força do vento. Alguém não a fechara completamente. Dedicou-se ao trabalho mas não resistiu. Num instante iria oferecer os seus préstimos para quando saísse em liberdade. Teve azar: na bomba retiveram-no indagando da sua experiência no ramo e curiosos pela voluntariedade do moço a conversa foi esticando. Não tardou muito ouviam-se carros de polícia a tocar e a correr para um e outro lado da avenida. Ficou baralhado: aquilo teria alguma coisa a ver com ele? Ficou por ali. À noite enroscou-se a um canto. Ao outro dia, com tudo mais sereno, resolveu partir. Apanhou boleia num camião que parara para abastecer e seguiu viagem. Com o sol a pino, ali ia a ermo, a pé, Alentejo adentro. Tinha a roupa que vestia e um boné oferecido pelo camionista. Uma fome desabrida e a goela seca fizeram-no aproximar do monte que avistou. Um casal já idoso regressava a casa fugindo ao calor tórrido. João Luís perguntou se lhe arranjavam um copo de água. Apercebendo-se do estado do rapaz convidaram-no para o almoço. E ele ficou, um dia, e outro e mais outro… Trabalhava com eles no campo, com eles comia e na sua casa pernoitava. Não dava mostras de pensar partir e ninguém lho mencionava. Afinal onde comem duas bocas comem três e o moço até merecia o sustento. Para Manuel Cortez e Benvinda, João Luís passou a ser o filho que perderam em Angola. O tempo corria devagar e João Luís sentia ter finalmente um tecto. 
Na vila comentava-se a dedicação do rapaz ao casal. O Verão estendeu-se, fizeram-se as colheitas e entrou-se no Outono. Manuel Cortez comentava com a mulher a ajuda inesperada. De alguma forma procuravam retribuir ao moço o seu empenho no trabalho. Este ano sim, iriam ter outra vez Natal imaginava ele antecipadamente. E o Natal estava já aí à porta. Mas quem bateu à porta foi a GNR. Dois soldados vinham com a suspeita de que João Luís era o foragido há muito procurado. 
Manuel Cortez ficou abatido. Inicialmente não disse nada. Depois, ainda incrédulo pediu que o deixassem ir falar a sós com o rapaz e voltou com a confirmação da suspeita. Mas pediu-lhes por tudo que ignorassem este encontro pois o rapaz se entregaria na vila, depois do Natal, dali a dois dias. Conhecedores da dedicação do rapaz ao casal e da garantia da palavra de Cortez, os guardas olharam atónitos um para o outro pasmados com a insólita proposta. O mais estranho é que concordaram. Efeito da Quadra?! Nessa noite João Luís esteve muito ocupado: escreveu uma carta onde explicava a sua última decisão, meteu umas coisas num saco e saiu sorrateiramente de casa. De manhã Manuel Cortez sentiu alguma frustração que transmitiu aos guardas. Estes nada podiam fazer além de ficar calados pois foram coniventes numa ilegalidade. O Natal parecia estragado para todos estes intervenientes.
João Luís voltou a tocar a campainha. Algo se passava no interior que demorava o atendimento. Tocou mais uma vez. Ao mesmo tempo a porta abriu-se dando passagem à directora e a um guarda. Ficaram estupefactos com a presença do rapaz. Seguiram-se as explicações e a notícia dos últimos desenvolvimentos. Para já João Luís iria participar da consoada prisional depois de cumpridas as formalidades oficiais. Nessa noite as Rádios e Televisões deram a notícia: “Jovem preso preventivamente, evadido há cerca de um ano, entregou-se hoje no estabelecimento prisional onde estivera retido. 
O insólito da notícia é que no mesmo dia a polícia prendeu o confesso autor do assalto que levou à prisão preventiva do primeiro por suspeita.” Nessa noite de Natal muita gente gostaria de abraçar João Luís: o amigo da Bomba de Gasolina, o patrão que lhe reiterava o posto de trabalho, os clientes que se habituaram ao seu ar prazenteiro, os soldados da GNR da vila alentejana preteridos pelos da cidade e Manuel Cortez e Benvinda que ganhavam do novo esperança em ter de volta o seu rapaz. A directora sentia-se feliz por ter confiado no seu instinto. E João Luís com redobrada alegria retirou do saco para a mesa da consoada o que carregava: presunto, queijo e vinho. A um canto da sala, no presépio aí instalado alguém foi colocar o Menino Jesus. As luzes ganharam mais brilho e deu-se início à consoada. A Esperança renascia. 

João Marçal

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