Manel da Raquel
Falando com pessoa amiga de figuras típicas da Gafanha, logo veio à baila o Manel da Raquel. Se fosse vivo, teria agora 68 anos. Durante a conversa, logo nos lembrámos da simpatia com que era acolhido por toda a comunidade. Era um deficiente mental, mas conseguia reconhecer as pessoas e até articulava algumas palavras e dizia curtíssimas frases. Era prestável, quando lhe apetecia, e vivia muito à volta da igreja matriz, onde participava nas principais missas, funerais e outras cerimónias, sem causar qualquer distúrbio. Quem ficasse ao lado dele, podia ouvir como ele, imitando as pessoas, sussurrava monossílabos ininteligíveis, de resposta ao celebrante. Eram mais sons do que palavras. E ali estava, na cerimónia, sentado, ajoelhado ou de pé, como qualquer participante.
Depois, andava de café em café a encontrar-se com os amigos, ajudando, se estivesse em dia disso, um ou outro, em tarefas simples. Não havia ninguém que não lhe dirigisse a palavra, à qual ele respondia, habitualmente, com alegria. Às vezes, irritavam-no, sem qualquer razão, mas, no fundo, todos gostavam do Manel da Raquel. Raquel era sua mãe, que muito sofreu para tratar de dois filhos deficientes.
O Manel utilizava os autocarros da Auto Viação Aveirense, entrando e saindo quando lhe apetecesse. Sempre ouvindo e respondendo às brincadeiras dos amigos e conhecidos. E até ia, com frequência, ver o seu Beira-Mar, ao estádio Mário Duarte, onde tinha sempre a porta franqueada. Era de todos conhecido e por muitos respeitado e ajudado. Nunca me lembro de o ter visto mal vestido ou sujo, salvo quando, pela força das circunstâncias, não sabia evitar a sujidade.
De quando em vez, fazia de sinaleiro, junto à igreja, quando pressentia que a manobra estava difícil. E um dia, conta-se, tantas ordens deu que o condutor, que não o conhecia, avançou, provocando um choque com outro veículo. Perante os protestos do confiante condutor, respondeu, com alguma graça: “é preciso ter olhinhos; é preciso ter olhinhos!”
No Timoneiro de Setembro/Outubro de 1977, tinha ele 38 anos, noticia-se, em artigo do Padre Miguel Lencastre, ao tempo prior da Gafanha da Nazaré, que a mãe do Manel faleceu no dia 30 de Outubro, tendo-se realizado o funeral no dia 1 de Novembro. A missa do funeral celebrou-se no cemitério, com a participação de toda a gente que ali recordava os seus mortos. No momento da colecta, o Padre Miguel fez um apelo à população para que contribuísse com os seus donativos, porque era urgente ajudar o Manel e seu irmão Carlos, também deficiente. Depois foi o arranjo da pobre habitação, dando-lhe melhores condições de habitabilidade.
Anos mais tarde, o Manel foi acolhido por um irmão, na Gafanha da Encarnação. E nunca mais apareceu nos sítios do costume. Houve, certamente, razões para isso. Morreu passado algum tempo. E não faltou quem dissesse que tal se ficou a dever ao facto de o Manel da Raquel ter saído do seu ambiente natural. Penso que não. O que importa, neste momento, é recordar esta figura típica da nossa terra, de quem todos gostavam.
Fernando Martins
Falando com pessoa amiga de figuras típicas da Gafanha, logo veio à baila o Manel da Raquel. Se fosse vivo, teria agora 68 anos. Durante a conversa, logo nos lembrámos da simpatia com que era acolhido por toda a comunidade. Era um deficiente mental, mas conseguia reconhecer as pessoas e até articulava algumas palavras e dizia curtíssimas frases. Era prestável, quando lhe apetecia, e vivia muito à volta da igreja matriz, onde participava nas principais missas, funerais e outras cerimónias, sem causar qualquer distúrbio. Quem ficasse ao lado dele, podia ouvir como ele, imitando as pessoas, sussurrava monossílabos ininteligíveis, de resposta ao celebrante. Eram mais sons do que palavras. E ali estava, na cerimónia, sentado, ajoelhado ou de pé, como qualquer participante.
Depois, andava de café em café a encontrar-se com os amigos, ajudando, se estivesse em dia disso, um ou outro, em tarefas simples. Não havia ninguém que não lhe dirigisse a palavra, à qual ele respondia, habitualmente, com alegria. Às vezes, irritavam-no, sem qualquer razão, mas, no fundo, todos gostavam do Manel da Raquel. Raquel era sua mãe, que muito sofreu para tratar de dois filhos deficientes.
O Manel utilizava os autocarros da Auto Viação Aveirense, entrando e saindo quando lhe apetecesse. Sempre ouvindo e respondendo às brincadeiras dos amigos e conhecidos. E até ia, com frequência, ver o seu Beira-Mar, ao estádio Mário Duarte, onde tinha sempre a porta franqueada. Era de todos conhecido e por muitos respeitado e ajudado. Nunca me lembro de o ter visto mal vestido ou sujo, salvo quando, pela força das circunstâncias, não sabia evitar a sujidade.
De quando em vez, fazia de sinaleiro, junto à igreja, quando pressentia que a manobra estava difícil. E um dia, conta-se, tantas ordens deu que o condutor, que não o conhecia, avançou, provocando um choque com outro veículo. Perante os protestos do confiante condutor, respondeu, com alguma graça: “é preciso ter olhinhos; é preciso ter olhinhos!”
No Timoneiro de Setembro/Outubro de 1977, tinha ele 38 anos, noticia-se, em artigo do Padre Miguel Lencastre, ao tempo prior da Gafanha da Nazaré, que a mãe do Manel faleceu no dia 30 de Outubro, tendo-se realizado o funeral no dia 1 de Novembro. A missa do funeral celebrou-se no cemitério, com a participação de toda a gente que ali recordava os seus mortos. No momento da colecta, o Padre Miguel fez um apelo à população para que contribuísse com os seus donativos, porque era urgente ajudar o Manel e seu irmão Carlos, também deficiente. Depois foi o arranjo da pobre habitação, dando-lhe melhores condições de habitabilidade.
Anos mais tarde, o Manel foi acolhido por um irmão, na Gafanha da Encarnação. E nunca mais apareceu nos sítios do costume. Houve, certamente, razões para isso. Morreu passado algum tempo. E não faltou quem dissesse que tal se ficou a dever ao facto de o Manel da Raquel ter saído do seu ambiente natural. Penso que não. O que importa, neste momento, é recordar esta figura típica da nossa terra, de quem todos gostavam.
Fernando Martins