AI A COR, A COR!...
Caríssimo/a: Brincar, jogar, viver a vida e aproveitar tudo o que de bom a Natureza nos oferecia para crescer. Assim era quando a correr nos atirávamo à água com o nosso “barco”. Tudo nos servia para as nossas corridas e regatas: bacias, alguidares, gamelas, pneus de camionetas, grandes troncos. E como nós nos esticávamos da ponte da Cambeia à entrada do Esteiro Grande, se éramos dos grandes; porque os mais pequenotes contentavam-se com as águas mais calmas do Esteiro Pequeno. Com remos ou com as mãos, lá havia um que chegava à meta e muitos riam e folgavam com a água que os 'afundou'.
Quando apareceu uma 'jangada', a festa foi de arromba – agora, além dos mergulhos, ouviam-se os berros do “arrais-construtor” que via a sua obra desmantelar-se e também só lhe restava mergulhar e deixar-se ir com a corrente... Grande animação, muita sementeira de amizade e de saudade. Nesses tempos, outros barcos os homens governavam e dispunham ao longo da Ria, junto das secas.
Paisagem de postal vivo e com pujança. Mudaram-se as correntes. Que é dos barcos? E dos homens que os governavam? Outros barcos vão surgindo; outros lemes traçam rotas alternativas; os sonhos vão e vêm... Porém, e foi destes que parti, outros há que levantam o ferro, recolhem as amarras, fazem-se aos ventos e às marés mas nunca encontram o farol; seja, talvez alguns dos barcos cheguem mas deixando, espalhados pelo sal das ondas do mar, os sonhos que os olhos povoavam na hora da despedida. E quantos acompanharam os restos dos barcos? E dos que conseguiram a bóia quantos saltaram para bom bordo? E o que dói, mas dói a valer, é vermos que a cor marca a diferença, tal como há quinhentos anos; ou há sessenta em que a raça traçava a fronteira da vida...
Quase apetece perguntar ainda e uma outra vez: E tu Senhor a dormir e a permitir tal horror!? Não, não respondas, custa-nos voltar a ouvir: Tu, sim tu, que fizeste ao teu irmão? Onde está o Abel?
Manuel