E depois…
1. Por altura do Dia de Portugal abriu em cena, em Lisboa, no Teatro da Comuna, uma peça vinda de Espanha. Se o vento e o casamento, pelo ditado popular, já não costumam ser muito bons, então no campo da arte teatral desta encenação presente a fasquia desce até ao impensável. Se no campo das artes toda a inspiração habitualmente se molda habilmente e enobrece – é esse o legado de milénios de história com arte, mesmo na sátira -, esforçando-se por aliar a criatividade, inspiração e elegância, partilhando o “melhor” que se sente e anseia, então, eis que na peça em causa o melhor de bom gosto que os ideólogos e realizadores partilham pode-se transcrever no título “Me cago en Dios”. Inacreditável, por onde pára e se delicia a imaginação parceira da Cassefaz e da Associação de Actores de Madrid!
2. O impensável à luz do bom senso está aí e é delicioso atractivo para a polémica que vende; quer o lugar do “silêncio” do não dar importância nem alimentar questões inflamadas que possam beliscar a sagrada liberdade de expressão, quer o lugar da “palavra” de inquietação e indignação pelo futuro cada vez mais indignificante em termos humanos que antecipamos em “lavar as mãos” e abrimos palco ao “lixo”. E não se pense que são questões de religião, de forma alguma, são as colunas referenciais e essenciais da sociedade que estão em questão; nesta peça em causa, em que se “encena livremente o que se quer sem ninguém ter nada a ver com isso” está a encenação “Me cago en Dios” em que o cartaz apresenta uma sanita aberta, da qual saem (ou para a qual entram) vários símbolos religiosos: uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, um Buda, um crucifixo, uma bandeira com o Crescente Vermelho.
3. Agora dizemos nós: não tenhamos ilusões, hoje, com todo o respeito pela liberdade de arte – mas também com a nossa liberdade de apreciar ou não… - nesse local “baixo” estão estes símbolos; amanhã serão outros que “merecerão” pela arte (que é sempre “emblema” do sentir) esse destaque: serão os símbolos e brasões das instituições, as bandeiras dos países e das cidades; e depois, o que falta? Faltam as pessoas, as crianças e os idosos nesse local, … E depois ainda, na era da clonagem humana, avançamos com encenações teatrais com órgãos de autópsia, ou com espectáculos da morte ao vivo (como já acontece em casos extremos polémicos na aplicação de pena de morte nos EUA, em que a concorrência vale milhões para a melhor imagem de sofrimento humano…). E, enganando-nos a nós próprios, chamamos a isto liberdade… Degradante realidade esta que às custas da “liberdade de tudo” estamos a construir. Que pensará um filho adolescente irreverente do título da peça espanhola? Ou a criança do bairro de lata? Chamando pelos nomes: será que em situação de educação da sua “liberdadezinha”, ao ver onde “colocam” Deus, onde colocará ele os pais, o professor, os colegas? Aos que estão nas fronteiras educativas não será este o “sinal” de que vale tudo já nada tendo valor…?! E depois admiramo-nos das inseguranças…
4. Neste escrito temos a noção do terreno de fronteira delicada que pisamos. Às vezes para algumas mentalidades menos sensíveis deste mundo parece que o objectivo primordial será apagar os restos da “ética da responsabilidade” e colocar no seu lugar sempre uma liberdade de tudo, sem fronteiras, que acaba por perder a validade, passando a ser incolor…fazendo do vazio o seu tesouro. Tempos estes que vivemos que nos desafiam grandemente a nunca “lavar as mãos”, naquilo que é o mal a apagar e o bem a edificar. Sublinhamos novamente que não se trata de questões de religião, até porque o “Absoluto de Deus” está acima de toda a possível mesquinhez artística; todavia, na relação com as questões sensíveis (da religião) temos a “prova dos nove” dos índices de maturidade, profundidade, sensibilidade e responsabilidade humanas. E é aqui que o panorama nos levanta inquietações: pelo andar da carruagem, e no caminho do individualismo exacerbado da “peça” de cada um, a banalização educativa de tudo e de todos e das próprias instituições que conduzem à desagregação social estão garantidas. Não será tanto assim? Depende do “ideal” que nos comanda…
5. Quanto mais formos banalizando os referenciais dos valores da consciência, já em “tempos sem tempo” para conversar e em contextos tecnologicamente mais difíceis para um diálogo de gerações, tanto mais difícil se tornará uma educação e convivência saudável capazes de promover uma maior cooperação entre todos para o bem comum. Será que é mesmo necessário criar instâncias de regulação (para gerar as fronteiras) da liberdade de expressão, da arte, da vida de cidadania? Queremos acreditar que não! Mas mal vai quando, pelo “défice da responsabilidade” (que seria de pressupor), esta questão ganha oportunidade premente. Ainda: talvez seja de dar valor ao que tem valor e merece todos os dedicados apoios e não prestigiar o apoio à vulgaridade. Por muito que nos custe e sensível que seja dizê-lo temos de o referir pois é a verdade. A dita peça teatral, hino à baixa liberdade sem limites, em realização até Agosto próximo, conta com apoio de todos os contribuintes (pelo Ministério da Cultura nos diversos serviços, Centro Cultural de Belém, Instituto das Artes, Embaixada de Espanha e Câmara Municipal de Lisboa).
6. É possível melhor? Só pode ser possível melhor! Mas para esse ideal mais edificante triunfar o papel dos referenciais e elites da sociedade terão de se colocar ao caminho nessa procura do “sonho”, não permitindo, com todo o respeito, espaço ‘ourado’ para a nulidade. Quanto a nós dissemos somente o que dissemos, em liberdade, sendo único motor destas linhas a inquietude de um ideal humano sempre maior. Uma qualidade que se quer de vida social merece arte maior. Será caso para dizer, do-mal-o-menos, venha o Futebol!