Os deputados sabichões
Depois de assistirem a uma sessão de esclarecimento, em Faro, Maria e Francisco perceberam o problema: o que fazer dos três embriões congelados há anos? A idade desaconselha a educação de uma nova criança (e há três embriões), e Francisco recusa-se que outra mulher possa receber o embrião. Explica que não quer dar de caras, no futuro, com um filho que não conhece. E destruí-los? Quem decide? O médico?
Carlos, lisboeta, concebido artificialmente, namora com Joana, também concebida da mesma forma. Querem casar, ou viver juntos, mas têm medo de fazer o teste não vá serem irmãos! É que eles não sabem, nem podem saber, porque o dador é anónimo.
António, portuense de gema, é meio psicopata. Como sabe que não há limite para ser dador tem um sonho (louco) de ser pai de mil crianças. Pode? Pode, porque não há qualquer limite para um homem ser dador.
Teresa, alentejana de Évora, concebeu artificialmente, mas nada disse ao marido, porque a lei permite que a mulher possa conceber artificialmente quando quiser. E assim viveram anos. O filho/a é herdeiro/a?
Quem leu até aqui o texto, julgará que trata sobre ficção científica. Mas engana-se. Tudo isto está previsto na lei aprovada no Parlamento na quinta-feira. Duvido que os deputados percebam o que votaram. E a dúvida só existe porque uma lei desta magnitude merece a reflexão que não aconteceu. E porquê? Não sei dizer.
Há inúmeros países na Europa que já trataram deste assunto e o debateram vezes sem conta. Foram consultados especialistas médicos e juristas de renome, académicos que estudam a ética em profundidade e escreveram sobre o assunto. E falo de países que estão longe, muito longe, de poderem ser considerados confessionais ou onde não exista investigação científica digna do nome (caso da Alemanha). E o que se sabe é que as soluções foram muito diferentes do que foi aprovado entre nós.
Talvez por isso um conjunto de cidadãos conseguiu recolher quase 80 mil assinaturas em pouco mais de dois meses e meio. A intenção? Pedir aos deputados que se querem aprovar uma lei sem um mínimo de debate público, que não consta do seu programa eleitoral e se não querem saber de outras experiências, então que se dignem a consultar o povo.
Há uns meses, o país votou expressivamente num candidato (por acaso socialista) que clamava por maior intervenção do povo na política. Há semanas, um conjunto de arquitectos influenciou, e bem, o Parlamento para aprovar uma lei. Agora há quase 80 mil eleitores, reunidos em tempo recorde, que pedem para serem ouvidos e... nada.
Dir-se-á que é gente simples, sem formação e incapaz de perceberem este problema. Talvez. Mas convinha saber que estão no rol apenas cinco membros do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, um antigo reitor da Faculdade de Medicina de Lisboa, Toscano Rico, professores de Medicina como Gentil Martins, juristas como Germano Marques da Silva, políticos como António Capucho e Bagão Félix, jornalistas como Laurinda Alves.
Fico pois satisfeito de saber que os nossos deputados encerram em si sabedoria tamanha que lhes permite dispensar tantos e avisados conselhos. Provavelmente devem estudar tudo isto quando tiram as tais férias sem explicação aparente, ou suspendem os mandatos.
Mas estou a ser injusto, porque as tais férias a que me refiro são com certeza para ir junto do povo, nos respectivos círculos eleitorais, explicar que o querem ouvir, saber das suas angústias porque, afinal de contas, eles (deputados) só lá estão para o representar. Como diz uma amiga, só faltava que o poder consultasse o povo.
.
Pedro Vassalo, mandatário para o referendo sobre a RMA.
:
Fonte: PÚBLICO de 26 de Maio de 2006