Primeiro foi a fúria dos ventos e das águas vindas de fora, e rodopiadas num bailado louco e devastador. Seguiu-se o grande êxodo no deserto do asfalto, com a pressa da travessia do Mar Vermelho, desta vez acossada pelas fúrias de Neptuno. Os diques da cidade não sustentaram a cidade mais baixa que o mar. (Nada adianta, como fazem alguns extremistas, reduzir o fenómeno à ira de Deus.)
O povo dos Estados fustigados pelo furacão Katrina, sentiu-se náufrago na casa que edificara sobre as águas, possivelmente sem as precauções de Noé na construção da Arca, também ele avisado sobre dilúvio que viria a abater-se sobre a terra.O acontecimento americano deste final de Agosto é trágico de mais para ser objecto de análises primárias ou considerandos políticos oportunistas. Estamos perante uma situação humana, uma comunidade, um povo irmão em gravíssimo estado de sofrimento.
A morte, a dor, a incerteza, a perda de tudo, a impotência humana mesmo com alguns erros de avaliação do fenómeno, foram progressivamente mostrados ao mundo pelos media. Nos primeiros dias prevaleceu a espectacularidade da destruição dos equipamentos urbanos. Aos poucos vieram ao de cima as situações humanas de irrefutável tragédia. A juntar a tudo isto uma espécie de humilhação implacável sobre um povo que é poderoso, o mais poderoso do mundo na economia, na técnica, nas comunicações inter-planetárias. Isso parece de nada ter valido no momento exacto em que era urgente tudo saber e tudo cumprir. Mesmo diante da ineficácia, muitos repórteres teimaram na velha propaganda dos grandes meios e das respostas rápidas. Até que todo o verniz estalou.
Que nem por isso fiquem esquecidos os gestos heróicos, a entrega generosa e solidária, a procura, por todos os meios possíveis, em minimizar as consequências da catástrofe. Alguns países pequenos tiveram pejo de oferecer seus préstimos de solidariedade, não fora o grande senhor, eventualmente, ofender-se de receber a esmola vinda dum pobre.
Que fique a lição. O império mais forte do planeta tem, nalguns momentos, tantas fragilidades como a mais insignificante aldeia dos confins da terra.
Voltamos à contemplação do ser humano, da sua fraqueza face à implacabilidade das leis que armaram o nosso próprio cosmos. Com todo o adquirido pelos milhões de anos, não passamos, dum momento para o outro, de uma insignificante cana agitada pelo vento. Como agora se viu- e se vê - na noite americana.