Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Volto ao tema, porque permanentemente a questão está aí nos meios de comunicação social e há quem me telefona a perguntar o que é que eu penso. Um dos casos mais recentes tem a ver com um homem que envenenou os pais (felizmente sobreviveram) a mando de uma bruxa que lhe disse que eles tinham o diabo no corpo e era preciso matá-lo. Claro, o homem sofre de problemas psiquiátricos… E lá vêm os rituais satânicos... Depois, perante a tragédia do nosso mundo hoje, com horrores sem conta e à beira do abismo, ouvimos: “Isto é o diabo, um inferno...”.
O Papa Francisco refere-se-lhe com frequência, para que as pessoas estejam atentas e evitem o que é obra do Maligno: o mal, o ódio, a guerra, as intrigas… O padre G. Amorth, falecido em 2016, exorcista na Diocese de Roma e fundador da Associação Internacional de Exorcistas, que fez milhares de exorcismos, chegou a dizer que ele andava à solta no Vaticano e denunciou seitas satânicas instaladas na Cúria e servidas por membros da Igreja, incluindo “monsenhores e até cardeais”. Ele lá saberia do que estava a falar!...
O Diabo é uma personagem com muitos nomes. Para lá de Diabo, também se chama Satã, Demónio, Satanás, Belzebu, Lúcifer, Mafarrico, Maligno... Ele enriqueceu enormemente a pintura e a escultura. Lembro-me particularmente de dois: um a defecar lá do alto, na Catedral de Friburgo (Alemanha), o outro, na Catedral de Basileia, a seduzir uma mulher, que sorri no enlevo da tentação… E há quem pretenda até tê-lo visto… Uma vez, uma senhora insistiu tanto que ele lhe aparecia, metendo-lhe medo, que o último conselho que me restou foi dizer-lhe: “Atire-lhe com o terço aos chifres!” Assim fez. E o terço? Caiu ao chão! Mas desçamos ao núcleo do problema. Aquilo que o ser humano nunca entenderá é a massa incrível do sofrimento e da maldade no mundo. Quando olhamos para a História, com todo o seu cortejo de horrores, de crimes, de infidelidades, de crueldade, de suor, de lágrimas, de sangue, de desprezo, de traições, de desespero, de indiferença, de violências, de fome, de guerras, de massacres, de genocídios, de aviltamento, de torturas..., perguntamos como é que tudo isso foi e é possível. Como é que é possível e donde é que vem tanto mal?
Uma vez que o mal não pode ter origem em Deus, que é infinitamente bom, supõe-se então que o Diabo poderia muito bem ser uma explicação... Ele tentou e tenta o ser humano..., o Homem caiu e cai na tentação e provoca o mal do mundo. Mas já Kant colocou na boca de um catequizando iroquês esta pergunta: Porque é que Deus não acabou com o Diabo, e, sobretudo, quem é que tentou os anjos, que, de bons, se transformaram em demónios, pois Deus não os tinha criado?
Para explicar o mal, contrapor o Diabo a Deus, como se o Diabo fosse uma espécie de anti-Deus, só aparentemente é umaexplicação. De facto, a afirmação de Deus e do Diabo, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O Diabo não explica nada. O mal está aí, porque vivemos num mundo finito, e Deus criou o Homem livre, mas a liberdade é condicionada, finita, e peca. De qualquer modo, em vez do Diabo, que nada explica, é melhor reconhecer que não temos explicação cabal para a existência de tanto horror no mundo.
Já em 1969, talvez o maior exegeta do século XX, Herbert Haag, que tive o privilégio de ter como amigo, escreveu uma obra célebre Abschied vom Teufel (Adeus ao Diabo), mostrando que não há nenhum fundamento para a crença no Diabo, impondo-se acabar com os exorcismos.
É certo que, nos Evangelhos, Jesus aparece por vezes curando certas enfermidades no contexto da crença do seu tempo de que o Diabo era a sua causa. É-nos inclusivamente oferecida a imagem de Jesus expulsando os demónios. Hoje sabemos que se tratava de doenças do foro psiquiátrico ou pura e simplesmente de pessoas com ataques epiléticos ou sofrendo de histeria.
De qualquer forma, Jesus anunciou Deus e não Satanás, e felizmente o Diabo não faz parte do Credo cristão. O núcleo da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, e o Reino de Deus consiste na salvação total e plena do Homem. Neste sentido, o Diabo pode aparecer como um símbolo personificado de todo o mal que aflige o ser humano, mas a que Deus há-de pôr termo, segundo a promessa de Jesus. O Diabo surge para dar expressão ao que não é o Reino de Deus, o contrário do Reino de Deus.
Precisamente para realçar mais e melhor o que constitui o centro da mensagem de Jesus: o futuro do seu Reino. O Diabo não pode de modo nenhum ser apresentado como uma espécie de concorrente de Deus. E não tem sentido continuar a pensar e a pregar que ele se mete nas pessoas, para tomar contadelas. Não há possessos demoníacos. Apenas há doenças e doentes de muitas espécies e com múltiplas origens, que devem ser ajudados. Assim, como escreveu o filósofo Manuel Fraijó,
" deveriam cessar as delirantes cerimónias de exorcismos". Por outro lado, se Jesus não pregou Satanás, mas Deus, então a fé do cristão dirige-se a Deus e não ao Diabo, o que exige na prática “exorcizar”, expulsar da vida pessoal e pública tudo o que é demoníaco, diabólico: o orgulho, a vaidade, a ganância, a corrupção, o ódio, o racismo, a misoginia, tudo o que se opõe à dignidade humana… E acolher os dons do Espírito Santo — amanhã é dia de Pentecostes: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade, temor de Deus — este, no sentido de o amor a Deus incluir o receio de O ofender no próximo.
Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia