«A questão da vida depois da morte é comum a muitas religiões. A expressão “ressurreição” não é a descrição de um fenómeno. É a verificação de um facto. Jesus foi morto e umas mulheres testemunham que ele está vivo e que ele continua connosco.»
1. Os profetas bíblicos foram severos com o culto e os seus rituais por causa da injustiça e da hipocrisia que eles encobriam. Jesus de Nazaré nasceu dentro da mesma tradição religiosa e foi o seu crítico mais radical. No célebre diálogo que abriu com uma mulher samaritana, junto ao poço de Jacob – judeus e samaritanos odiavam-se – atreveu-se a dispensar os respectivos lugares sagrados para a relação com Deus: Mulher, chegou o tempo em que os verdadeiros adoradores não vão procurar nem Jerusalém nem Garizim. O que o meu Pai deseja são adoradores em espírito e verdade[1].
Estaria Jesus a negar valor a todos os rituais do culto? Não é Deus que precisa do culto e dos seus rituais, mas os seres humanos. Ele não precisa que o informemos do que se passa connosco e na sociedade. A oração não modifica a sua santa vontade, modifica-nos a nós. Acorda-nos da indiferença perante o sentido mais profundo da vida. Podemos tentar comover a Deus com os nossos pedidos, mas é o próprio Deus que se comove pelo eterno amor que nos tem. Nós é que não podemos deixar de ser quem somos: seres que, para viver na verdade, reconhecem o seu limite e pedem socorro.
As celebrações litúrgicas católicas estão distribuídas em dois ciclos fundamentais: o do Natal e o da Páscoa. Ao resto chamam-lhe Tempo Comum. Estes arranjos dos liturgistas têm bases bíblicas e uma longa história. São uma forma de organizar a oração oficial da Igreja. Seria ridículo pensar que foi Deus que compôs e impôs esta organização ritual. A verdadeira Igreja, a não confundir com a hierarquia eclesiástica, é o voluntariado do Evangelho. Precisa de rezar para não se descuidar de Deus e do mundo. Uma liturgia sem o imperativo do serviço aos mais necessitados, sem a negação do autoritarismo eclesiástico, isto é, sem a simbólica do lava-pés[2], está condenada a ser nada.
Somos irremediavelmente fruto de um tempo, de um lugar, de uma memória e de circunstâncias muito furtuitas. Não estamos, porém, condenados a viver apenas dentro dessas coordenadas. O ser humano é, por essência, possibilidade de entrar em contacto com outras geografias humanas e culturais. Os animais aparecem feitos. O ser humano tem a vida inteira para se fazer, nunca está acabado. Não é, vai sendo. Por outro lado, é capaz de autoconsciência, de linguagem e de sentido. Mas a sua linguagem não é só a do quotidiano ou das ciências. É também a voz de uma interioridade que se exprime através da literatura, da música e de todas as artes. A linguagem simbólica, metafórica, mítica, parabólica não explica. É a forma de exprimir o que não cabe em nenhuma explicação. Sugere o indizível e o infigurável.
Como ser de relação, os delírios nacionalistas não têm em conta o sentido relativo da história e da cultura. Não podemos viver como um povo eleito ou como um povo condenado. Perder o sentido do relativo da nossa história e da nossa cultura – que não se confunde com o relativismo em que tudo se equivale – é cair na tentação de, falsamente, as absolutizar.
2. I. Kant viu muito bem que a pergunta das perguntas, a que é preciso responder, está condensada numa só: o que é o homem, isto é, o que é o ser humano?
Não é possível responder a essa pergunta sem ter em conta a sua dimensão religiosa. Como diria Fernando Pessoa, o grande mistério é o próprio mistério de existir, que não é algo de provisório que se possa vencer pela ciência ou pela técnica.
Recorrer à palavra mistério por tudo e por nada, é uma forma de preguiçosa ignorância. Existem, de facto, muitas realidades que pareciam um mistério e que, hoje, estão ao alcance de explicações científicas e de realizações tecnológicas. As ciências humanas têm de trabalhar – e cada vez mais – pelo que nos é possível conhecer. Outra coisa é a experiência do inabarcável por qualquer conceito. A experiência do insondável da inteligência e do afecto não é a de uma zona ainda por explorar, mas a da consciência de que não há explicação para as coisas mais simples, para as realidades que não têm porquê. Não há explicação para um poema. Todas as explicações ficam aquém desse milagre de juntar palavras que produzem uma sensação do inefável. A vida simbólica não explica, sugere o que não estava previsto nas estrelas.
3. A morte é o que há de mais fácil de explicar para as ciências da saúde. A palavra defunto é de um miserável latim: “deixou de funcionar”! É uma concepção absolutamente mecanicista do ser humano. As pessoas que fizeram a experiência da morte daqueles que amam não se consolam com uma ausência indesejada. Querer abolir a megalomania do desejo matando o desejo de viver é uma desistência muito pouco humana.
As religiões, quando não enlouquecem – como aconteceu no massacre desta Páscoa – são uma saudável reacção contra o fatalismo e o niilismo, mas a cedência ao ritualismo deixa a alma inconsolável.
S. Paulo não argumenta a Ressurreição de Cristo como privilégio de Jesus de Nazaré[3]. Pelo contrário, argumentou a partir da ressurreição geral. Para Paulo, não pode haver os esquecidos da ressurreição.
A questão da vida depois da morte é comum a muitas religiões. A expressão “ressurreição” não é a descrição de um fenómeno. É a verificação de um facto. Jesus foi morto e umas mulheres testemunham que ele está vivo e que ele continua connosco.
O iaveísmo sapiencial, ao contrário do nacionalista, é universal: Deus é criador de tudo e de todos, não é apenas o Deus de um povo. Para os que acreditam que a vida humana não acaba com a morte, não pode ser o privilégio de um grupo, de alguns santos, de algumas pessoas excepcionais. Deus não pode abandonar na morte aqueles que ama.
É esta a originalidade da revelação de Jesus de Nazaré, personalidade situada nos limites de um tempo e de um lugar. Não está centrada em si mesma, está polarizada por um Deus que não é propriedade de nenhum povo nem de nenhuma religião. É o Deus que tem, no seu coração, todos os seres humanos e para sempre. Foi esta revelação que comoveu o próprio Jesus e que ele classificou como fonte da nossa verdadeira alegria[4].
Quando fazemos da ressurreição de Cristo um privilégio, esquecemos que ele é o irmão universal. Onde estão os que morreram, aqueles de quem ninguém se lembra? Não estão esquecidos. Confessamos, contra toda a evidência empírica, mas com a mais pura fé e confiança, com a maior fidelidade à vida, que vivem no coração de Deus. Um Deus que se esquecesse das suas criaturas não merecia um minuto de atenção[5].
Frei Bento Domingues OP no PÚBLICO de hoje
[1] Cf Jo 4, 21-24
[2] Jo 13, 2-20
[3] I Cor 15,13
[4] Lc 10, 17-22
[5] Sobre a questão da morte e da ressurreição ver o magnífico texto de Anselmo Borges, no DN de 20.04.2019.