Atravessei a ponte da GAFANHA
para visitar uma elegante propriedade rural
que o primo, em casa de quem estou hospedado,
teve o bom gosto de edificar ali
Aveiro, 28 de Setembro de 1864
Meu caro Passos
Escrevo-te de Aveiro. São 7 horas da manhã de um histórico dia de S. Miguel. Acabo de me levantar. Acordou-me o silvo da locomotiva. Abri de par em par as janelas a um sol desmaiado que me anuncia o Inverno.
A primeira coisa que este sol alumiou para mim, foi a folha de papel em que te escrevo; aproveito-a, como vês, consagrando-te neste dia os meus primeiros pensamentos e o meu primeiro quarto de hora.
Aveiro causou-me uma impressão agradável ao sair da estação; menos agradável ao internar-me no coração da cidade, horrível vendo chover a cântaros na manhã de ontem, e imensas nuvens cor de chumbo a amontoarem-se sobre a minha cabeça, mas, sobretudo intensamente aprazível, quando, depois de estiar, subi pela margem do rio e atravessei a ponte da GAFANHA para visitar uma elegante propriedade rural que o primo, em casa de quem estou hospedado, teve o bom gosto de edificar ali.
Imaginei-me transportado à Holanda, onde, como sabes, nunca fui, mas que suponho deve ser assim uma coisa nos sítios em que for bela.
Proponho-me visitar hoje os túmulos de Santa Joana e o de José Estêvão, duas peregrinações que eu não podia deixar de fazer desde que vim aqui.
A casa em que eu moro fica fronteira à que pertenceu ao José Estêvão. Há ainda vestígios das obras que ele projectava fazer-lhe e que, por sua morte, ficaram incompletas. Tudo isto se vendeu, e dizem que por uma ninharia.
Cheguei a Aveiro um pouco dominado pela apreensão de que talvez viesse ser infeccionado pelos eflúvios pantanosos da terra e cair atacado por sezões, circunstância que não obstante o colorido local que me havia de dar, nem por isso me havia de ser muito agradável.
Nada porém de novo me tem por enquanto sucedido, e continuo passando bem, e, o que é mais, engordando.
E tu? Estás ainda em Paranhos? Sentes alguma mudança para melhor nos teus impertinentes incómodos? Aconselho-te a que não te atemorizes à perspectiva de um inverno na aldeia; por feio que seja sempre é melhor que o da cidade, principalmente para quem, como tu, não goza nela aquilo que para a maioria das pessoas torna preferível a última.
Tua mana continua melhor?
O Eugénio de quem fui companheiro de viagem de Ovar até a Aveiro, deu-me notícias favoráveis dela e espero que melhor as daria hoje se a visse.
Não tardará muito que eu te procure ou no Porto ou em Paranhos. Está a expirar o mês de Setembro e eu dou em breve por terminada a minha excursão.
Se falares com o Nogueira Lima recomenda-me e dize-lhe que o azulejo da cozinha dos Bernardos de Alcobaça lhe será entregue depois da minha chegada ao Porto.
Recomenda-me igualmente, tendo ocasião, ao Augusto e ao Alfredo e, se puderes escreve ao
teu amigo do coração
J. G. Gomes Coelho
In "Cartas e esboços literários"
NOTA: Joaquim Guilherme Gomes Coelho era o nome do escritor Júlio Dinis